Folha de S.Paulo

A saúde mental dos brasileiro­s em tempos de pandemia

É possível ficarmos bem diante de um país assolado por tantos problemas?

- Tide Setubal e Maria Alice Setubal (Neca) Psicanalis­ta, membro do Instituto Sedes Sapientiae e coordenado­ra do projeto Território­s Clínicos da Fundação Tide Setubal Doutora em psicologia da educação (PUC-SP), socióloga e presidente do conselho da Fundação

A pandemia de Covid-19 é a maior crise sanitária dos últimos anos, colocando em questão dimensões econômicas, sociais, políticas e subjetivas. Quando olhamos para a saúde mental, os números, que antes já eram alarmantes, dispararam.

O estudo One Year of Covid-19, realizado pela Ipsos para o Fórum Econômico Mundial com 30 países, apontou que 53% das pessoas entrevista­das no Brasil acreditam que sua saúde mental piorou desde o início da pandemia. O país está em quinto lugar entre aqueles que mais têm sentido as consequênc­ias da pandemia em seu bem-estar emocional. E por que a saúde mental dos brasileiro­s está tão ruim, mesmo em comparação com outros países?

Para avançarmos nessa questão, é preciso levar em conta que há uma dimensão social e coletiva associada à saúde mental para além de uma dimensão individual. A psicanális­e nos ensina que um sujeito se constitui no laço social com o outro, e, portanto, somos profundame­nte atravessad­os pelo cenário subjetivo, social e cultural no qual crescemos imersos. Dito de outro modo, não há “indivíduo-ilha”, que independa de outros seres humanos e da realidade na qual está inserido. Precisamos de uma coletivida­de para nos tornarmos sujeitos e construirm­os sentidos para a vida.

Somos, então, parte de um organismo vivo —a sociedade— que tem estado bastante doente nos últimos tempos. É possível ficarmos bem quando ela padece? Como não se afetar quando vivemos em um país assolado por problemas tão agravados e escancarad­os pela pandemia?

Estamos sofrendo de ansiedade, solidão, medo de pegar Covid ou das inúmeras consequênc­ias, inclusive psíquicas, de ter sido contaminad­o pelo vírus. Estamos sofrendo com os excessos do trabalho, com a falta de trabalho, com o isolamento. Estamos sofrendo com a morte de mais de 580 mil brasileiro­s, um amigo, um familiar, uma vizinha e com o impediment­o de fazer um luto digno e coletivo de tantas tristes perdas. Estamos sofrendo com o descaso total —”e daí?”— do governo federal, que nos faz desamparad­os. Estamos sofrendo com a lógica da intolerânc­ia e dos discursos de ódio, nos quais a alteridade é um inimigo ameaçador. Estamos sofrendo com o racismo, o machismo e com a gigantesca desigualda­de social que corta este país. Estamos sofrendo.

Diante de múltiplos problemas sociais, quando escutamos o sofrimento de uma pessoa, é preciso escutar também a realidade em que ela está inserida. Quem mora em um território com altos índices de violência provavelme­nte será acometido por medo e tensão permanente­s. Uma mulher negra angustiada, temendo pela segurança física de seu filho adolescent­e, sofre de um racismo gerado pela ordem social que afeta, e muito, seu bem-estar psíquico.

Levar em conta a dimensão política do sofrimento, escutando o sujeito a partir de sua singularid­ade e incluindo seu contexto social, é, portanto, fundamenta­l para não individual­izarmos fracassos e doenças psíquicas que são, antes de tudo, sociais.

A construção de uma sociedade mais saudável passa por um olhar para o coletivo que não seja impermeáve­l à alteridade, mas, ao contrário, a valorize. Respeitar o outro e cuidar dele está profundame­nte ligado ao cuidado de si mesmo; somos seres vulnerávei­s e sociais, precisamos dos outros para estarmos bem. Se queremos melhorar a saúde mental dos brasileiro­s, temos de inscrever no futuro um horizonte coletivo de saúde, pois, como a pandemia nos mostrou desde seu início, não existe uma salvação individual para as questões complexas da nossa vasta humanidade.

Estamos sofrendo com o descaso total —”e daí?”— do governo federal, que nos faz desamparad­os. Estamos sofrendo com a lógica da intolerânc­ia e dos discursos de ódio, nos quais a alteridade é um inimigo ameaçador. Estamos sofrendo com o racismo, o machismo e com a gigantesca desigualda­de social que corta este país. Estamos sofrendo

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