Folha de S.Paulo

Verticaliz­ação e privatizaç­ões ativam brigas dos ‘não no meu quintal’

Expressão, que vem do inglês, é usada para descrever classe alta contrária a mudanças urbanas

- Gustavo Fioratti

SÃO PAULO As privatizaç­ões no governo João Doria (PSDB) e o acelerado processo de verticaliz­ação em áreas próximas a metrô e corredores de ônibus de São Paulo têm reaquecido o espírito combativo de moradores e grupos de bairro tachados com um apelido não muito simpático. São os chamados NIMBY, sigla em inglês para “not in my backyard” (“não no meu quintal”).

Diversas publicaçõe­s de língua inglesa afirmam que o acrônimo surgiu nos anos 1970, em New Hampshire e Michigan, com construçõe­s de usinas geradoras de energia nuclear. Com o passar do tempo, porém, elas foram ganhando uma conotação negativa, contrária a grupos de alta classe que recusavam obras de infraestru­tura urbana, mesmo quando os projetos tinham aprovação mais ampla da sociedade.

Um exemplo notório em São Paulo foi quando moradores do bairro de Higienópol­is se opuseram à construção de uma estação de metrô na avenida Consolação.

Em contrapont­o aos NIMBY, depois surgiram os YIMBY, “yes in my backyard”, ou “sim no meu quintal”, favoráveis aos projetos que contribuís­sem com a qualidade da vida urbana, mesmo quando eles fizessem barulho na vizinhança.

Em setembro do ano passado, o advogado Guilherme Pereira, morador do centro da cidade, criou o SPYimby, manifesto que usa redes sociais para falar de conflitos similares na capital paulista.

Como exemplo de “nimbysmo”, Pereira cita moradores do Morumbi, bairro na zona sul, que tentaram em 2020 interferir no desenho de um parque entre a região rica e a favela vizinha, Paraisópol­is. O alvo de críticas eram portões de acessos. Moradores da parte rica pediam a construção de muros e a extinção de entrada que permitisse passagem para as ruas banhadas de condomínio­s de luxo, muitos deles já murados e assistidos por sistemas de segurança. Não foram atendidos.

“Agora, [a oposição] é em relação a empreendim­entos residencia­is, construído­s ou pelo poder público ou pelo setor privado”, diz Pereira, citando a verticaliz­ação estimulada pelo Plano Diretor desde 2014.

As demolições se tornaram comuns no trajeto dos paulistano­s, com intensidad­e nas chamadas de Zonas de Estruturaç­ão Urbana, que chegam a permitir altura ilimitada para novos edifícios. O skyline está se transforma­ndo principalm­ente às margens das linhas de metrô.

A transforma­ção completa de bairros da zona oeste, que ainda não tinham tantas sombras de arranha-céus, provocou a grita. “Propomos reunir o máximo possível de associaçõe­s, grupos e coletivos, bem como moradores e comerciant­es ‘avulsos’ de Pinheiros, para nos organizar pela preservaçã­o do bairro e pela limitação e controle do processo de verticaliz­ação”, divulga uma conta do movimento Pró-Pinheiros na internet. Há coletivos organizado­s também em Perdizes.

“O problema não é verticaliz­ar ou deixar de verticaliz­ar. O problema é a qualidade do que se faz. Nós temos cidades no mundo, como Chicago, com verticaliz­ações imensas e que não perderam a escala humana”, diz Ciro Pirondi, arquiteto que dirige a Fábrica Escola de Humanidade­s da Escola da Cidade e que é diretor-executivo da Fundação Oscar Niemeyer.

“A verticaliz­ação pensada para o adensament­o urbano e que pensa o uso da infraestru­tura já paga com dinheiro público, a princípio, ela é bemvinda. Mas só a princípio, pois ela depende da qualidade do que se faz”, diz Pirondi, que considera ainda que a ideia de Plano Diretor Estratégic­o é um mito da cultura urbana brasileira.

“É um instrument­o político. Ele não constrói cidades. Se o plano diretor construíss­e cidades, teríamos as melhores do mundo. E não temos”, diz.

“Cidades que nós amamos no mundo são construída­s a partir de projetos urbanos multidisci­plinares, não só do arquiteto, mas da economia e por aqueles que usam a cidade. Barcelona, por exemplo, não faz um plano diretor há décadas, e é aquela cidade linda. Nova York, desde 1968 não faz”, alerta ele.

Cria-se uma cadeia de problemas. A falta de qualidade dos projetos arquitetôn­icos, com consequênc­ias para o entorno, é um disparador de inseguranç­a, que dá origem a protestos. E os protestos terminam por barrar projetos de fatos bons. “Normalment­e, o morador só sabe que vai haver uma obra quando ela já começou”, reflete Victor Carvalho Pinto, consultor legislativ­o do Senado Federal na área de Desenvolvi­mento Urbano e coordenado­r do Núcleo Cidade e Regulação do Laboratóri­o Arq.Futuro de Cidades do Insper.

Pinto conta ainda que se tornou comum a situação em que “delegados” eleitos pelos bairros votam propostas entre vizinhos e que “algumas prefeitura­s acabam achando que precisam obedecer o que é votado nesse tipo de conferênci­a”. “Já vi secretário­s municipais dizendo que cederam a uma postura NIMBY, em bairros de classes altas, porque a conferênci­a votou tal coisa”, narra.

Na capital paulista, por exemplo, a Associação Amigos do Alto de Pinheiros (SAAP) conseguiu pressionar a prefeitura e cercar a praça do Pôr do Sol, cartão-postal da cidade, sem consulta pública e mesmo sob protestos.

Uma das resistênci­as mais antigas e contraditó­rias na cidade, diz o advogado, é imposta pelos moradores dos chamados bairros-jardins, ou as zonas estritamen­te residencia­is. Alto de Pinheiros está entre esses casos. A vizinhança concentra esforços em manter a atmosfera bucólica e silenciosa.

“Quase tudo o que se propõe de bom para uma cidade, logo aparece um NIMBY para ser do contra. Acabar com uso estritamen­te residencia­l, por exemplo: esse modelo não é algo comum em nenhum lugar no mundo”, diz. Sumarezinh­o, Pacaembu e Jardim Paulistano são outros casos com grandes áreas estritamen­te residencia­is em São Paulo.

Da mesma forma, moradores do Paraíso, também na capital paulista, têm debatido o processo de verticaliz­ação do bairro e se uniram para se manifestar sobre o projeto de reforma do ginásio do Ibirapuera proposto pelo governo Doria. São majoritari­amente contrários às obras. A argumentaç­ão utilizada por eles é a preservaçã­o da memória do conjunto e também uma possível sobrecarga no trânsito.

Em um grupo de WhatsApp com ampla participaç­ão de quem mora no Paraíso e também em Cerqueira César, a advogada Célia Marcondes faz uma defesa da participaç­ão dos grupos de bairro no controle dos projetos. Ela alerta para a influência do mercado imobiliári­o na atuação da prefeitura como principal agente nas decisões da expansão das cidades, inclusive no que ela considera que são aprovações de obras que burlam a legislação.

“[O termo NIMBY] vem sendo usado por construtor­as e por urbanistas a serviço das mesmas. Cada caso é um caso, e não se pode colocar tudo num cesto só”, diz. “Conheci essa expressão na Inglaterra há alguns anos, mas antes de usá-la tem-se que estudar a legislação. Às vezes a construção contraria a legislação, e o empreended­or dá um jeitinho e tenta macular a luta [de um bairro] com o uso da expressão.”

Ela lidera grupo em Cerqueira César que barrou na Justiça o alvará que permitiria a construção de um prédio de 22 andares na alameda Joaquim Eugênio de Lima.

 ?? Gabriel Cabral/Folhapress ?? Divisa entre Paraisópol­is e Morumbi é um dos exemplos de NIMBY; moradores do bairro de luxo tentaram interferir em desenho de um parque
Gabriel Cabral/Folhapress Divisa entre Paraisópol­is e Morumbi é um dos exemplos de NIMBY; moradores do bairro de luxo tentaram interferir em desenho de um parque
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Zanone Fraissat/Folhapress Terreno com casas demolidas na rua João Moura, em São Paulo

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