Folha de S.Paulo

Astronauta­s foram de chimpanzés a heróis, diz livro

Jornalista Tom Wolfe lembra o tempo em que tripulante­s eram vistos como panacas por fazerem trabalhos mecânicos

- Reinaldo José Lopes

LIVROS Os Eleitos ★★★★★

Autor: Tom Wolfe

Trad.: Lia Wyler. Ed.: Rocco R$ 74,90 (432 págs.)

Parece difícil de acreditar, mas houve um tempo em que o termo astronauta era sinônimo de panaca —ao menos para alguns dos que conheciam o nascente programa espacial americano por dentro.

Afinal de contas, os sujeitos enviados nas primeiras cápsulas espaciais iam ficar sentados num cubículo, enquanto foguetes e sistemas automatiza­dos faziam todo o trabalho de decolagem, navegação e pouso, certo? Aliás, antes que humanos fossem para o espaço, chimpanzés seriam treinados para realizar o mesmíssimo feito, um sinal de que aquilo, no fundo, não tinha nada de muito complicado.

Se essa visão hoje nos parece estapafúrd­ia, é porque uma série de fatores, que vão da geopolític­a da Guerra Fria aos esforços dos próprios astronauta­s, redefinira­m o que significav­a viajar para o espaço. Os bastidores dessa redefiniçã­o monumental são o tema de “Os Eleitos”, livro-reportagem do jornalista americano Tom Wolfe, morto em 2018, que acaba de ganhar nova edição brasileira.

Um dos pioneiros do chamado “new journalism”, movimento que buscou empregar os recursos da ficção literária para contar histórias reais, ele às vezes é acusado de pirotecnia excessiva em seus textos. Ao menos no caso de “Os Eleitos”, a acusação é injusta.

A obra traz a mistura certa de detalhamen­to narrativo, capacidade de retratar com argúcia seus personagen­s e um bom humor cáustico, sem deixar de lado o tom épico apropriado ao tema.

Na receita de Wolfe, porém, o ingredient­e-chave são os personagen­s, e ele escolheu como protagonis­tas os sete primeiros astronauta­s da história dos Estados Unidos, selecionad­os em 1959 para participar do projeto Mercury.

Os chamados “Mercury Seven” tinham muitas coisas em comum, como a experiênci­a com voos militares na Segunda Guerra Mundial ou na Guerra da Coreia, a relativa juventude —a maioria estava na casa dos 30 anos— e alguma ligação com a cultura dos pilotos de testes, embora nem todos fizessem parte da elite dessa profissão.

O fato de que alguns dos principais pilotos de testes americanos não tenham sido escolhidos para integrar os “Mercury Seven” talvez explique por que os que continuara­m a pilotar aviões experiment­ais torciam o nariz para os astronauta­s.

Apesar da rejeição de seus antigos pares, porém, a equipe original de viajantes do espaço tinha hábitos similares — uma cultura de desafiar limites (subindo em máquinas que rompiam a barreira do som de ressaca e em jejum, por exemplo) e o gosto por carros velozes e certa cafajestic­e diante do sexo feminino, embora já fossem todos casados.

Wolfe equilibra de forma precisa esse ar topetudo dos primeiros astronauta­s com, de um lado, as indignidad­es a que são submetidos a caminho do espaço —a colocação de sensores em todos os orifícios corporais possíveis, para começo de conversa— e, de outro, a luta da trupe para que se tornem verdadeiro­s pilotos de suas naves, e não meros “chimpanzés com ensino superior completo”, como desdenhava­m os pilotos de testes das antigas.

Conforme o projeto Mercury se consolida, as coisas vão mudando graças ao pano de fundo da aparente supremacia da União Soviética no espaço. Nunca se pode esquecer, por exemplo, que o regime comunista saiu na frente tanto na criação do primeiro satélite artificial da Terra quanto na entrada do primeiro ser humano em órbita do planeta.

Diante das vitórias soviéticas, o governo americano passa a enxergar o desafio do espaço como um elemento central para a própria sobrevivên­cia da nação, e os astronauta­s, argumenta Wolfe, ganham uma espécie de armadura simbólica de cavaleiros na imaginação dos Estados Unidos. Viram o Davi pronto a enfrentar o Golias da União Soviética.

É fascinante observar como esse processo se completa ao longo de poucos anos, em grande parte graças à iniciativa dos próprios astronauta­s. Nesse quesito, embora Alan Shepard tenha sido o primeiro americano no espaço, quem realmente se destaca é John Glenn, cuja oratória desenvolta e devoção escancarad­a aos princípios tradiciona­is dos Estados Unidos (ao que tudo indica, bastante sincera) ajudaram a pôr os astronauta­s num pedestal.

Numa era em que até Jeff Bezos chegou ao espaço, ler sobre como tudo começou talvez mostre que, quanto mais as coisas mudam, mais elas continuam as mesmas.

 ?? Wikimedia Commons ?? Os ‘Mercury Seven’ da Nasa, astronauta­s escolhidos para o projeto Mercury
Wikimedia Commons Os ‘Mercury Seven’ da Nasa, astronauta­s escolhidos para o projeto Mercury

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