Folha de S.Paulo

‘Não tem nada aqui’

Estava escrito na porta que me levou ao submundo cômico da espionagem internacio­nal

- Bia Braune Jornalista e roteirista, é autora do livro ‘Almanaque da TV. Escreve para a TV Globo | dom. Ricardo Araújo Pereira | seg. Bia Braune | ter. Manuela Cantuária |qua. Gregorio Duvivier | qui. Flávia Boggio | sex. Renato Terra | sáb. José Simão

Vem aí mais um filme do James Bond. Acho ótimo, embora, como cidadã brasileira, eu não leve espiões muito a sério. Não que eu não ame o agente a serviço secreto de Sua Majestade. Pelo contrário. A questão é que moro no país onde planos sigilosos contra o Supremo Tribunal Federal viralizam feito meme e tramoias do governo circulam por corrente de “zap” junto com o golpe do Pix e vídeos de calopsita cantando o hino nacional.

Aqui, quem vive de espionagem à moda antiga precisa complement­ar renda com bolo no pote. Ou seja, se Bond, James Bond, está “sem tempo para morrer”, o subtítulo da vez deveria ser imagina se vai ter paciência com o Brasil.

É por isso que, com o euro mais em conta, uma missão me levou ao submundo de Tallinn, cidade da antiga União Soviética. Mais especifica­mente, ao secreto 23º andar do hotel Viru. Okay, não tão “secreto” assim.

Durante a Guerra Fria, todos sabiam que a KGB, serviço de inteligênc­ia da URSS, havia instalado uma central de escuta no alto do prédio, um dos mais badalados do lado de lá da Cortina de Ferro. O detalhe mais irônico era a sonsa inscrição na porta de entrada —“siin ei ole midagi”, ou “não tem nada aqui”, em estoniano.

No entanto, é claro que tinha. A cobertura do Viru estava aparelhada com todos os gadgets de filme retrô: telefones vermelhos, máquinas de escrever em código, máscaras de gás, antenas e transmisso­res hoje tão discretos quanto uma máquina de lavar louça.

Os cinzeiros do lobby eram dotados de microfones, para monitorar o papo até dos não fumantes. A sauna também estava sob vigilância, pois empresário­s pelados tendem a falar de negócios, e pelo menos 60 quartos viviam grampeados, o que rendia situações absurdas, como a do hóspede que, usando o banheiro, se queixou de um perrengue em voz alta para ainda do trono, minutos depois, ouvir a campainha. Um agente deixara um rolo de papel higiênico em sua porta.

Tudo isso vi e aprendi durante um tour pelo andar secreto, agora convertido em museu. Está exatamente como em 1991, quando a Estônia declarou independên­cia e os espiões se escafedera­m. Ao final da visita guiada, turistas fazem selfies zoeiras na mesa do ex-diretor da KGB. Sinceramen­te, é o que regimes autoritári­os merecem.

Um dia, também no Brasil, teremos distanciam­ento o bastante para achar graça. Estarei entre os que farão chifrinho em retratos oficiais. E por essa declaração, se eu não voltar a este espaço semana que vem, você já sabe. Ou foi queima de arquivo ou a Folha decidiu ampliar o sudoku. Enfim. Só se vive duas vezes.

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Marcelo Martinez

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