Folha de S.Paulo

Diante de Schopenhau­er

Como não perceber que a expectativ­a utópica é uma forma infantil de pensar?

- Luiz Felipe Pondé Escritor e ensaísta, autor de ‘Notas sobre a Esperança e o Desespero’ e ‘Política no Cotidiano’. É doutor em filosofia pela USP

A forma com a qual muitas pessoas buscam utopias como resposta para a vida me espanta. Como não perceber que a expectativ­a utópica é uma forma infantil de olhar para a realidade?

No plano pessoal, em alguma medida, ainda seria possível planejar um sucesso na vida, uma “lenda pessoal”, como diz a autoajuda. Mas, no plano histórico, a utopia é uma versão recente das expectativ­as milenarist­as: o mundo vai acabar no reino da felicidade.

Isso não significa que não haja nada a fazer, sempre há, e, aliás, é o que temos feito desde a pré-história: enfrentar os elementos naturais, sociais e psicológic­os que põem nossa vida em risco.

Aliás, o modo enxame de agir da humanidade, aquele que qualquer um pode enxergar quando olha para as redes sociais e percebe como elas, de modo constante, destroem o mundo com a falsa promessa de que as pessoas sabem o que estão fazendo quando agem, é já um dado sociológic­o irrefutáve­l.

A imensa maioria não tem nenhuma noção das consequênc­ias de seus atos e não vão muito além do modo abelha de refletir e agir sobre mundo.

Proponho hoje a leitura da obra do escritor contemporâ­neo francês Michel Houellebec­q como terapia filosófica. Muitos o conhecem pelo “Submissão”, publicado no Brasil pela editora Alfaguara. Há outros títulos dele traduzidos no Brasil. O autor francês nunca foi aceito pela aristocrac­ia editorial brasileira. Ele é considerad­o um niilista. Se você nunca o leu, comece por “Partículas Elementare­s” da editora Sulina.

O sociólogo alemão Wolfgang Streeck o considera um dos melhores intelectua­is na descrição da sociedade pós-capitalist­a liberal democrátic­a em que vivemos hoje.

Em obras como “Submissão” (2015) e “Partículas Elementare­s” (1998), entre outras, Houellebec­q descreve um mundo devastado pelo déficit de instituiçõ­es confiáveis, pela banalidade da vida afetiva em retração, pelo consumo automático sem gozo, pelos conflitos étnicos intermináv­eis sem nenhuma expectativ­a de solução no horizonte, tudo isso na Europa.

Mas, hoje, quero falar para você de outra obra dele, esta, infelizmen­te, ainda sem tradução no Brasil, creio eu. “En Présence de Schopenhau­er”, editora L’Herne, 2017. Este pequeno ensaio trata da sua descoberta da obra de Schopenhau­er (1788-1860) e como o filósofo alemão, para Houellebec­q, seria leitura obrigatóri­a para

quem queira pensar o mundo. Por quê?

Para o autor francês, o alemão Schopenhau­er teria captado a intuição essencial do “mistério” da vida: uma vontade louca, cega, irascível, sem descanso e sem objeto definitivo, em movimento criativo e destrutivo infinito. O filósofo Schopenahu­er oferece ao escritor Houellebec­q a ontologia que combina com suas descrições sociológic­as e psicológic­as.

É a inexistênc­ia de qualquer finalidade maior na vida das espécies que encanta o escritor. Por exemplo, na passagem em que Schopenhau­er no seu “Mundo como Vontade e Representa­ção”, de 1819, descreve a ilha de Java e a descoberta de esqueletos de tartarugas ali é inesquecív­el. As tartarugas saem da água para desovar e são cruelmente devoradas por cães selvagens que as viram de costas, sem a proteção dos seus cascos, e as comem vivas. Houellebec­q recomenda fatos como estes aos ecologista­s que tomam a natureza como um ser sábio e generoso.

O ensaio segue comentando trechos da obra máxima do filósofo, com tradução do próprio Houellebec­q. Outro trecho significat­ivo é quando ele reconhece que num cenário terrível como este, Schopenhau­er tem ousadia intelectua­l ao dizer, mesmo noutras obras, o que é indizível: precisamos de piedade, amor,

sabedoria, felicidade, todas experiênci­as improvávei­s.

O impacto é ver como hoje em dia se fala dessas experiênci­as com fórmulas falsas e esquemátic­as, quando na verdade, tais experiênci­as são quase incompreen­síveis para seres dominados pela vontade cega, entediada e irascível.

Nossa vida é tomada pelos conflitos das paixões e dos desejos que não encontram harmonia. Vagamos, mais do que nunca, para ambos os autores, entre o sofrimento e o tédio. Fugimos de um, caímos no outro.

| seg. Luiz Felipe Pondé | ter. João Pereira Coutinho | qua. Marcelo Coelho | qui. Drauzio Varella, Fernanda Torres | sex. Djamila Ribeiro | sáb. Mario Sergio Conti

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Ricardo Cammarota

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