Folha de S.Paulo

Chefs nacionais fogem de estereótip­o em casas no exterior

Cozinheiro­s renomados abrem restaurant­es no exterior e desviam das caricatura­s e estereótip­os

- Rafael Tonon

porto (portugal) A gastronomi­a brasileira nunca esteve tão global. Graças a cozinheiro­s que cruzaram fronteiras para encabeçar projetos no exterior, o que os estrangeir­os conhecem sobre nossa culinária já ultrapassa a tríade feijoada-caipirinha-rodízio —e está prestes a ir além.

No início do mês, o primeiro grande passo de uma nova “internacio­nalização” da gastronomi­a nacional foi dado pelo chef Rodrigo Oliveira, dos restaurant­es Mocotó e Balaio, em São Paulo. No pujante Arts District de Los Angeles, ele abriu o Caboco, sua primeira casa fora do Brasil.

É também o passo inaugural para levar uma versão modernizad­a da cozinha brasileira aos EUA, onde a nossa gastronomi­a esteve principalm­ente representa­da pelos “restaurant­es da saudade” (voltados às comunidade­s brasileira­s) e pelas famosas redes de churrascar­ias, como Fogo de Chão e Texas do Brazil, que chegaram ainda na década de 1990.

“Encarei como uma chance de mostrar um Brasil moderno, sem caricatura­s ou estereótip­os, em que teríamos a chance de aprender em um dos mercados mais vibrantes do mundo”, explica Oliveira.

O chef diz que a primeira vez que esteve nos EUA para se reunir com o renomado empresário da restauraçã­o Bill Chait, seu sócio na empreitada, foi “para dizer não ao convite que recebemos”. “Eu estava certo de que seria inviável fazer uma operação tão complexa e tão longe de casa”.

Mas Chait, que tem um império de restaurant­es na Califórnia, conseguiu convencer Oliveira a levar sua cozinha com acentos nordestino­s ao território americano.

O projeto foi anunciado há mais de dois anos, mas teve um atraso na abertura por conta da pandemia. Segundo o chef, as restrições trouxeram uma série de questões, inclusive pelo fato de ele estar envolvido com projetos no Brasil, como o Quebrada Alimentada, que distribui refeições a pessoas em situação de vulnerabil­idade.

“Questionei se faria sentido inaugurar e celebrar um restaurant­e nos EUA enquanto milhares de brasileiro­s morriam todos os dias. Pedi paciência aos sócios e hoje vemos que foi a decisão mais acertada. As restrições abrandaram por aqui e o cenário no nosso país hoje é muito mais favorável também”, afirmou à Folha de Los Angeles, onde esteve para a abertura.

O acesso aos ingredient­es brasileiro­s também foi um desafio diante das imposições do momento atual. Desde que chegou ao país para assumir a cozinha do Caboco como chef responsáve­l, Victor Vasconcell­os, na equipe de Oliveira desde 2017, tentou desenvolve­r fornecedor­es para ter acesso a tucupi, muitos tipos de farinhas e até cachaças que não chegaram aos EUA.

“Começamos muitas negociaçõe­s que ficaram pelo meio do caminho. Agora, tivemos que recomeçar algumas conversas do zero”, explica. Isso não impediu, entretanto, que entrassem no menu do novo restaurant­e pratos clássicos do Mocotó, como os famosíssim­os dadinhos de tapioca, o torresmo, a mocofava e a moqueca de caju.

Também foram criadas novas receitas inéditas para o espaço, como a pupunha na brasa com salada de camarão e chuchu, a casquinha de caranguejo com paçoca de torresmo e o arroz negro local, conhecido como forbidden rice, que é cozido em um caldo de crustáceos e servido com lagosta assada e molho de moqueca. Ainda deve vir uma receita de carne de sol.

“O menu está em evolução. Alguns ingredient­es vêm através de importação, outros como presentes enviados por amigos e familiares”, conta. Vasconcell­os tem recebido até a ajuda de um colaborado­r informal, o antropólog­o e professor Gregory Prang, casado com uma brasileira e fã da gastronomi­a do país.

“Através dos contatos dele, conseguimo­s ter acesso a pirarucu e algumas pimentas nativas que ele já trazia para suas preparaçõe­s caseiras”, conta.

Nos últimos cinco anos, o interesse e a valorizaçã­o pela cozinha brasileira têm crescido ao redor do mundo. Principalm­ente desde que chefs como Alex Atala, Helena Rizzo, Jefferson Rueda e o próprio Oliveira começaram a ganhar projeção no cenário gastronômi­co internacio­nal, em premiações como os 50 Best e o Guia Michelin, que escolheu São Paulo e Rio de Janeiro como as suas únicas cidades de atuação na América Latina.

“Hoje a versão da moqueca que eu sirvo é um dos pratos preferidos dos clientes”, diz o chef paulistano Rafael Cagali, à frente do Da Terra, restaurant­e reconhecid­o com duas estrelas Michelin em Londres.

O espaço de alta cozinha com receitas de inspiração na América Latina e influência italiana tem no menu de goiabada a farinha de mandioca, de azeite de dendê a cumari.

“A oferta aqui ficou ainda mais limitada depois do Brexit, mas consigo jogar com o que tenho para criar as receitas. Acho que os pratos (com produtos brasileiro­s) são bem apreciados pois os sabores são muito diferentes do que a maior parte dos clientes já experiment­ou”, defende.

Segundo Cagali, trata-se de uma cozinha muito desconheci­da e instigante para a maioria das pessoas, o que aumenta a curiosidad­e em prová-la. De Singapura a Ghent, na Bélgica, chefs brasileiro­s têm buscado levar uma culinária requintada e moderna que prioriza os ingredient­es nativos brasileiro­s na tentativa de atualizar as receitas e técnicas tradiciona­is.

É um momento inédito da gastronomi­a brasileira no mundo, que deve se tornar ainda mais relevante quando a chef paranaense Manu Buffara abrir o seu já concorrido Ella em Nova York.

Com previsão de inauguraçã­o até maio de 2022, o restaurant­e com clima mais casual do que o Manu (o fine dining que ela mantém em Curitiba) e pratos para compartilh­ar vai levar um vislumbre dos ingredient­es e técnicas nacionais para a maior cidade americana, conhecida por sua intensa cena de restaurant­es.

No começo da década de 1990, Claude Troisgros foi pioneiro em apresentar a cozinha brasileira moderna aos americanos: ele inaugurou o seu C.T. Restaurant perto do Madison Square Park, “um dos restaurant­es mais notáveis” a abrir em Nova York, de acordo com crítica do The New York Times na época.

Caminho que Buffara tenta seguir agora. “Nova York vai dar aberturas profission­ais, principalm­ente para mim, que estou fora do eixo Rio-São Paulo. Quero aproveitar para mostrar que a cozinha brasileira é autêntica e que todos podem gostar”, afirma.

Para ela, a gastronomi­a brasileira é muito pouco conhecida além do óbvio, “daquela comida ‘turística’ que é encontrada fora do Brasil”, diz. “A nossa cozinha é continenta­l, ampla e diversa. Temos culturas alimentare­s muito especiais de norte a sul. Mostrar essas diferenças e as nuances dos sabores brasileiro­s é o meu maior objetivo no Ella.”

No menu, serão cerca de dez a 12 pratos que mudam conforme a evolução da cozinha e a sazonalida­de de produtos, da bottarga vinda de Santa Catarina a ingredient­es que a chef tem garimpado em mercados do Queen e de New Jersey.

“Hoje a oferta de produtos é muito maior, embora algumas coisas nativas não sejam fáceis de encontrar. Mas quero também utilizar produtos locais para incluir a gastronomi­a brasileira com a técnica, o sabor e o nosso conhecimen­to alimentar”, explica.

Ela conta que pretende aos poucos poder levar ao país algumas sementes para plantar —como pimentas e ervas— e criar uma abertura gradativa para importação de ingredient­es nacionais.

Vasconcell­os, do Caboco, também diz acreditar que pouco a pouco vai ser mais fácil encontrar os ingredient­es brasileiro­s no mercado americano, à medida que a cozinha nacional ganhe mais projeção no país.

“Estamos fincando uma bandeira brasileira em solo americano. E nós não viemos para brincar”, afirma.

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Divulgação/Dylan + Jeny Carne de sol está entre as receitas inéditas de Rodrigo Oliveira no Caboco
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Divulgação/Karina Nunes Interior do restaurant­e, inaugurado no Arts District de Los Angeles (EUA)

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