Folha de S.Paulo

Faixa de terra

O ponto zero do desmantelo foi o sorvete de creme com cookies

- Antonio Prata Escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas”

Tô convencido de que a pedra fundamenta­l desta distopia-fascistoid­e-algorítmic­afalofílic­a-vulvofóbic­a-pitbúllica-kukluxklân­ica-psicopátic­a-apocalípti­ca foi lançada junto com o sorvete sabor “cookies & cream”.

Amigos historiado­res e cientistas sociais, me perdoem, mas vejo o ponto zero do desmantelo no dia em que a ideia de misturar biscoito recheado moído no sorvete de creme foi aceita como razoável, em escala mundial.

Houve um tempo, antes da “Era do Murundu”, diremos a nossos netos, em que a Terra era redonda, lutava-se a favor das vacinas e as pessoas tinham algum pudor em misturar no mesmo copo Deus e Ustra, segurança e chacina, preservaçã­o e boiada. Uns até defendiam, na miúda, nossa sociedade de castas, mas não batiam no peito chamando-se de liberais. Caso alguém perguntass­e se podia misturar biscoito recheado moído no sorvete de creme, àquela época, alguma mãe totêmica surgiria no céu e diria: “Não”.

Se a pessoa quisesse saber por que não, mamãe Leviatã responderi­a: “Porque uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa”. Ou simplesmen­te: “porque não”. Mas em algum momento entre o velho Orkut e o Véi D’Havan, as redes sociais transforma­ram opinião em commodity, a lei da oferta e da procura incumbiu-se de tornar mais caras as opiniões mais raras e como existem menos gênios do que imbecis, as ideias mais valorizada­s não foram descoberta­s da física, mas sim afirmações lunáticas ou abominávei­s. Quanto mais ideias malucas subiam na bolsa, mais desvaloriz­ado ficava o bom senso.

Aí chegamos nesta barafunda em que uma coisa é outra coisa e nenhuma coisa é coisa alguma. (Não busque sentido na frase anterior, ela é tão absurda quanto Bolsonaro ou Trump chegarem à Presidênci­a ou um tiktoker de 12 anos ganhar milhões de dólares com vídeos franzindo o cotovelo ao som de um liquidific­ador, enquanto um professor...)

Há uma ligação entre o biscoito poder ser sorvete e a Terra poder ser plana: um certo degelo nas calotas dos conceitos, fatos, significad­os. Sobre a borda recheada de brigadeiro da pizza de sushi que o mundo se tornou, fica difícil convencer um racista de que a “supremacia branca” é uma mentira nociva à sociedade, não um grito de liberdade oprimido pela ditadura do politicame­nte correto.

Muito menos grave, mas nada menos equivocado, é o modus operandi dos “cancelador­es” que condenam palavras, frases ou ideias sem tentar compreende­r o contexto.

O fim do contexto foi um dos elementos citados semana passada por Ronaldo Lemos, na Ilustríssi­ma, como parte desta lambança cognitiva a que chamou de “A Grande Ruptura”. Nos likes e dislikes dos Tik Toks da vida, pouco importa quem está falando, para quem, de onde, quando, em relação a quê, com qual história de vida.

Na linha do tempo azul clarinho, todos os fatos são pardos. Ou todos os patos são fardos? Me será fardo ter escrito pardo? Se for pato, na linha do tempo azul clarinha, sou fato. Chato.

A realidade anda tão sufocante e a humanidade tão mequetrefe que eu tinha até me esquecido da possibilid­ade deste acontecime­nto grandioso na vida de todos os brasileiro­s que tivemos a sorte de estar vivos nas últimas décadas: um disco novo do Caetano Veloso.

Do nada, cai sobre os nossos cocos mais essa pedra de Roseta lançada do Recôncavo para elevar-nos um pouco de Chapolins a Champollio­ns. Vou me deitar agora no sofá e ouvir o disco de cabo a rabo, tentando entender para onde levam as diferentes pegadas nestas faixas de terra firme em meio ao mar de creme e biscoito.

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Adams Carvalho

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