Folha de S.Paulo

Uma cadeira

O mesmo móvel que acomodou revolucion­ários e cancelados

- Bia Braune Jornalista e roteirista, é autora do livro ‘Almanaque da TV’. Escreve para a TV Globo

Às vezes me pergunto como se inicia uma coleção. É ao acumular vários objetos parecidos? Ao perseguir uma série de itens, até obtê-la por completo? É possuir? Distraídos, colecionar­emos. E talvez por isso, o mais precioso dos meus acervos sequer exista de verdade.

Para entender melhor, puxe uma cadeira —mas não qualquer uma. É preciso que seja do tipo conhecido na gringa como Peacock (pavão). E no Brasil, Painho. Um ícone feito de vime e muitas firulas, que conheci ainda menina, assistindo ao “Chico Anysio Show”. Refestelad­o num modelo branco e esplêndido, o humorista vivia o personagem que deu origem ao apelido nos anos 1980.

Vários vipões tiveram Painhos. Os presidente­s Kennedy e Roosevelt, os escritores Mark Twain e Truman Capote, estrelas de Hollywood como Elizabeth Taylor e Marilyn Monroe. Uma, inclusive, aparece no pôster do filme erótico “Emmanuelle”.

Minha coleção, porém, começou platônica. Sem a Painho em si. Cleodon, um amigo pernambuca­no, me enviou LPs da rainha do xaxado Marinês e da cantora Elza Soares, ambas lindamente acomodadas. Nisso, comprei Elis Regina de ladinho e Julio Iglesias com as meias à mostra.

Cientes do meu colecionis­mo, conhecidos passaram a colaborar freneticam­ente, enviando fotos. Descobri que dava para forrar todas as paredes do hall da fama com os mais variados astros da música posando em Painhos: Cher, Xuxa, James Brown, Gal Costa, Donna Summer, Jane e Herondy.

E mais: de vários cantos do Brasil e do mundo, elas me chegaram flagradas em trechos de filme, álbuns de família e vitrines chiques de loja. O auge se deu no interior de Goiás, quando um amigo clicou um caubói rústico, entornando pinga no mais psicodélic­o assento de birosca já visto. “Caracteriz­a Painho?”.

Um dia, tomei coragem e fui ao encontro da minha própria musa. A de verdade, física, um pouco chumbada pelos anos de uso. Comprada de uma pacata família do subúrbio carioca. Jamais ocupada por qualquer célebre “derrière”.

No entanto, ao colocá-la na minha sala de estar, bateu um desconfort­o. Pensei na antológica imagem do líder dos Panteras Negras, Huey Newton, sentado. E na empresária rica e branca em sua cadeira de sinhá numa festa de aniversári­o. Percebi que ali não havia lugar para mim, daquele jeito. Tratei, então, de humildemen­te vendê-la, mantendo minha coleção apenas virtual. Um trono não pode ser ocupado por uma só pessoa.

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Marcelo Martinez

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