Caminho pelo centro no Chile será difícil para Kast e Boric, diz analista
Para Claudia Heiss, votação do populista de direita Franco Parisi é castigo às forças tradicionais
santiago Até o segundo turno das eleições no Chile,em 19 de dezembro, o ultradireitista José Antonio Kast e o esquerdista Gabriel Boric devem enfrentar dificuldades para conquistar os votos de centro.
Terceiro no pleito, o outsider Franco Parisi teve boa votação (12,8%) no primeiro turno deste domingo (21), resultado de uma campanha marcada por rejeitar o mainstream que governou o país desde a redemocratização, em 1990.
Para a cientista política Claudia Heiss, 49, que é diretora do Instituto de Assuntos Públicos da Universidade do Chile, os votos conquistados por Parisi representam um castigo contra as forças partidárias tradicionais do país.
Em entrevista à Folha ,aespecialista aponta semelhanças entre Kast, que nega os crimes da ditadura de Pinochet, e o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, além de prever protestos mais violentos no Chile, caso o ultradireitista seja eleito em dezembro.
O resultado da eleição de domingo a surpreendeu? Sim.
Embora as pesquisas indicassem que haveria segundo turno, os números foram inesperados. Eu achava que Kast teria votação menor, porque veio se desgastando bastante desde o último debate, em que foi confrontado por Boric e [pelo candidato de centro-direita Sebastián] Sichel, sem dar respostas satisfatórias. Também achava que Boric terminaria um pouco à frente de Kast, não o contrário.
Mas a principal surpresa foi a muito boa eleição que a centro-direita e a direita fizeram no Congresso. Embora o resultado final aponte para um Senado e uma Câmara divididos, sem grande maioria de nenhum lado, esperava-se um avanço maior da esquerda, que acabou não ocorrendo.
Houve, ainda, uma mudança do eleitorado que devemos observar nas regiões. Nas últimas eleições locais, a direita elegeu apenas um governador, e agora, na votação para conselheiros regionais, avançou muito, criando também na administração das regiões um cenário novo e dividido. Como explicar o fenômeno da votação de Parisi, que não vive no Chile nem veio para a campanha e para a eleição? Parisi não se expôs, não foi interpelado. Há diversos temas sobre os quais sequer sabemos o que ele pensa. Talvez isso seja uma parte da explicação de sua boa votação. Outra é que é um candidato que abraçou a agenda do outsider, da antipolítica. O eleitor de Parisi é de uma classe média diminuída, vulnerável à crise econômica, com medo da incerteza, do desemprego, da chegada de imigrantes que podem tirar trabalho dos chilenos.
Houve uma boa votação em Parisi no norte, onde a chegada de venezuelanos e demais imigrantes é intensa e gera tensão e medo. Nesse sentido, há uma mudança, porque a tradição do norte do país é de ser mais progressista do que o sul. Afinal, é ali que estão os sindicatos ligados à mineração, e já existe um bom histórico de reivindicações e movimentos trabalhistas.
O discurso de Parisi é muito focado no econômico, na ideia de que todos poderão ser pequenos empresários em um governo seu. E também tem um elemento populista forte, ele afirmou várias vezes que distribuiria dinheiro, sem explicar de onde sairia. Parisi apostou num eleitorado individualista, que rejeita a ideia de solidariedade social e econômica que é tão forte na narrativa da esquerda.
É uma agenda de propostas muito parecida com a de Kast, não?
O eleitor de Parisi se identificaria mais com Kast, na teoria. Creio que será mais fácil seus eleitores migrarem para a extrema direita do que para Boric. Mas há diferenças importantes entre os dois. Kast está muito associado à política tradicional, ao pinochetismo, a uma direita católica. Já Parisi, critica abertamente o mainstream político no qual se inclui Kast — quem, apesar de ter abandonado a UDI [União Democrática
Independente], ainda tem uma imagem bem vinculada a essa direita antiga do Chile.
Parisi não se pronunciou publicamente sobre temas comportamentais, sua agenda não toca em assuntos morais. Esta é outra diferença com Kast. Não sabemos bem o que Parisi pensa de temas relacionados à diversidade, aos direitos reprodutivos da mulher, por exemplo, enquanto Kast coloca muita ênfase em mostrarse contra o que se relaciona à dita “ideologia de gênero”.
Podem parecer detalhes, mas apontam para a possibilidade de que uma parte do eleitorado de Parisi não migre imediatamente para Kast, por serem eleitores mais antissistema ou não identificados com a visão religiosa da política. É possível que uma parcela desse eleitorado simplesmente se abstenha de votar, mas é mais difícil ainda que se sinta identificado com Boric.
Seria natural esperar que, agora, Kast e Boric moderem o discurso e busquem o eleitor de centro?
Essa seria a lógica. Mas o contexto atual do Chile põe um problema nesse movimento. O fato de Kast e Boric terem passado ao segundo turno é sinal de que há uma rejeição grande aos partidos do mainstream, ou seja, à direita tradicional da UDI e aliados e à Concertação, de centro-esquerda. Foi uma grande derrota para essas forças políticas que predominaram desde a redemocratização.
Então, essa estratégia de buscar o centro pode ser problemática. As pessoas mostraram rejeição a esse centro. Mas há espaço para negociações com setores dos partidos. E é o que devemos ver nas próximas semanas.
No caso da centro-esquerda, Yasna Provoste [da Democracia Cristã, parte da Concertação] não anunciou apoio imediato a Boric, pois talvez esteja buscando um espaço num futuro governo. Já o restante de seu partido, sim. O caso de Sichel [da coalizão Chile Vamos, da UDI] é ainda mais complicado, porque ele fez toda a campanha afirmando que é de uma direita diferente, mais tolerante, não discriminatória, que respeita os direitos humanos e que de modo nenhum se sente identificada com o pinochetismo. As agendas econômicas de Sichel e Kast podem ser parecidas, mas Sichel trabalha por uma direita moderna e liberal e rejeita a direita arcaica e conservadora representada por Kast.
Em que sentido Kast se parece com o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro? Há um efeito-contágio ou é um fenômeno independente?
São muito parecidos no que diz respeito às políticas de segurança, à ideia de militarizar para resolver problemas, e porque minimizam ou relativizam os abusos de direitos humanos ocorridos nas ditaduras.
O efeito-contágio tem mais a ver com um movimento internacional, de crise do sistema representativo, de rejeição às ditaduras de Cuba e Venezuela, e também uma associação à figura de Donald Trump e à extrema direita europeia.
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O fato de Kast e Boric terem passado ao segundo turno é sinal de que há uma rejeição grande aos partidos do mainstream [...] Foi uma grande derrota para essas forças políticas que predominaram desde a redemocratização
Como a eleição pode impactar os trabalhos da Constituinte?
Muitas decisões vão depender do novo Congresso. Nada será viável sem vontade política do novo presidente e do Congresso, é errado pensar que um processo é independente do outro.