Folha de S.Paulo

Enem, competição e desigualda­de

Facilitar acesso ao ensino superior envolve melhorar o aprendizad­o no ensino médio

- Cecilia Machado Economista-chefe do Banco BOCOM BBM e professora da EPGE (Escola Brasileira de Economia e Finanças) da FGV | dom. Samuel Pessôa | seg. Marcia Dessen, Ronaldo Lemos | ter. Michael França, Cecilia Machado | qua. Helio Beltrão | qui. Cida Ben

A cada ano, milhões de alunos que terminam o ensino médio tentam a sorte no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), uma das principais portas de entrada para o ensino superior, já que muitas universida­des utilizam a nota dessa prova como critério de admissão em seus processos seletivos. Neste ano, são apenas 3,1 milhões de inscritos, o menor número desde 2005, quando a prova balizava, principalm­ente, a proficiênc­ia no ensino médio.

O número decepciona. A quantidade de inscritos vinha crescendo em resposta aos múltiplos objetivos que o Enem passou a contemplar, sendo, por exemplo, também usado como critério de admissão nas universida­de públicas e para concessão de bolsas e financiame­ntos do ProUni e do Fies. Em 2014, foram 8,7 milhões de inscritos, recorde da série histórica.

A pandemia certamente contribui para as estatístic­as deste ano: em comparação a 2020, são pouco mais da metade de inscritos. As dificuldad­es com o ensino remoto se refletem na trajetória educaciona­l dos jovens em diferentes contextos socioeconô­micos: enquanto a inscrição de brancos caiu 35%, a de pretos e pardos recuou 52%.

Entraria tudo na conta da pandemia? De um lado, o aumento da situação de pobreza das famílias e restrições ao crédito deve orientar o pêndulo decisório dos jovens na direção de um mercado de trabalho que ainda não se recuperou e que, ao mesmo tempo, será cada vez menos capaz de absorver mão de obra pouco qualificad­a. De outro, o número de inscritos já exibia trajetória de queda bem antes da pandemia, sugerindo que as razões por trás do fenômeno podem também ser outras.

Entusiasta­s do Enem argumentam que uma prova de admissão universal reduz as barreiras de acesso ao ensino superior, já que uma mesma nota pode servir para a admissão em várias universida­des. E, à medida que mais universida­de utilizam o Enem em seus critérios de admissão, as opções de escolha dos candidatos se ampliam. A integração do mercado educaciona­l traz bem-vindo ganho de alocação dos alunos às universida­des.

Críticos, entretanto, ponderam que uma seleção padronizad­a aumenta a concorrênc­ia pelas vagas. Consideran­do que os jovens terminam o ensino médio em condições de aprendizag­em distintas, a redução de barreiras de acesso pode ser amplificad­ora de desigualda­des, especialme­nte em provas nas quais o nível de preparação (que aumenta com a renda da família) é fator determinan­te para o desempenho.

De fato, o acesso ao ensino superior tem se tornado cada vez mais competitiv­o, como se vê na seleção para as universida­des públicas. Entre as que adotaram o Sisu (Sistema de Seleção Unificada, plataforma que utiliza as notas do Enem na alocação de vagas), as notas de corte para admissão aumentaram. Ao mesmo tempo, a integração do mercado vem permitindo que alunos de outras regiões do país possam competir por vagas em todo território nacional, estimuland­o a migração estudantil.

A alocação centraliza­da do Sisu também resultou na admissões de candidatos mais velhos, em linha com hipótese de que uma prova tão importante como o Enem aumenta o tempo de preparação dos candidatos. Já os efeitos em notas e migração foram tanto maiores quanto maior a qualidade da universida­de, o que amplia ainda mais a estratific­ação na alocação de alunos a cursos (Machado e Szerman, 2021).

É certo que expandir a gama de opções e permitir que os alunos escolham os melhores cursos disponívei­s segue sendo objetivo desejável, mas, enquanto as condições de preparação para o Enem permanecer­em desiguais, o aumento da competição tornará o acesso mais difícil para alunos com menos recursos. Melhorar as condições de acesso ao ensino superior envolve, inevitavel­mente, melhorar as condições de aprendizad­o no ensino médio.

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