Folha de S.Paulo

Negros LGBTQIA+ levam diversidad­e para as redes sociais

Influencia­dores usam TikTok, Instagram e Twitter para inspirar e oferecer rede de apoio com bom humor

- Marcelo Azevedo

salvador Redes sociais são questionad­as por se tornarem veículos para a disseminaç­ão de discurso de ódio e fake news, mas é nelas também que a população negra LGBTQIA+ hoje encontra espaço para falar sobre diversidad­e.

Influencia­dores negros que têm contribuíd­o ativamente com o debate sobre sexualidad­e e diversidad­e estão hoje no Instagram, no Twitter e no TikTok.

Raphael Vicente, 21 anos, é um deles. Negro, gay e morador do Complexo da Maré, no Rio, favela com 140 mil habitantes, ele bomba no TikTok. Tem 2,3 milhões de seguidores.

Vicente faz produções para redes sociais desde os 14 anos, mas ganhou fama no TikTok, em 2020, com vídeos de humor sobre tema do cotidiano que ele mesmo roteiriza e edita. Os personagen­s são membros da própria família. A avó, a madrinha, o cachorro de estimação.

Uma das postagens mais conhecidas defende a campanha de vacinação da Covid-19. Nele, Vicente e sua família explicam medidas de combate à pandemia e como funciona a imunização contra a doença. Com linguagem clara, direta e bem-humorada, o vídeo termina com uma coreografi­a funk. O post teve quase 70 mil compartilh­amentos no Twitter.

Ele afirma que já pensou em ser bailarino, mas seu trabalho na rede social se transformo­u na principal fonte de renda —e também espaço para ativismo. “Muitos influencia­dores não se posicionam, mas eu não quero ser só mais um.”

Vicente defende ser importante mostrar a realidade que conhece. “O que eu sou hoje em dia é por causa da carga cultural que tive aqui dentro, na Maré”, diz. “E, mesmo não falando claramente sobre as pautas que me são mais importante­s, eu quero que elas estejam inseridas no que estou fazendo.”

Ele acredita que a visibilida­de do seu trabalho numa rede como o TikTok pode inspirar outros jovens que têm os mesmos dilemas e origem. “Criando conteúdo com minha realidade, eu posso incentivar outras pessoas que vivem como eu a cria alguma coisa, mostrar que elas também podem fazer isso, independen­te do lugar onde moram.”

‘Muitas pessoas negras chegam em mim e falam que sou uma inspiração’

Doug Oliver, 22, compartilh­a desse sentimento. Ele conta que sempre quis trabalhar com a internet, mas não tinha referência­s de criadores que o representa­ssem. Além disso, era muito tímido, e, sempre que postava um vídeo no YouTube, acabava apagando por vergonha.

Mesmo assim, o jovem nunca parou de tentar, e encontrou a ferramenta ideal: os stories do Instagram, lançados em 2016, que têm a vantagem de sumir após 24 horas. “Naquela época as pessoas postavam coisas luxuosas, e eu não tinha isso, decidi só mostrar a minha vida.”

Hoje, o menino que apagava seus vídeos é produtor de conteúdo. Compartilh­a looks, maquiagens e vídeos de humor diariament­e. Tem mais de 500 mil seguidores no Instagram e no TikTok.

Mas seu sucesso não foi construído sozinho. Para ele, um dos maiores motivos para sua ascensão foi ter unido amigos para a criação do canal Mansão das Poc (termo utilizado para se referir a membros da comunidade LGBTQIA+). O grupo vive na mesma casa e compartilh­a a sua rotina doméstica com quase 500 mil inscritos no YouTube.

“Quando eu era um espectador, não havia muitos criadores de conteúdo como eu: afeminado, negro, que não tem problemas em colocar um cropped [miniblusa que deixa barriga à mostra] e sair na rua. Hoje, muitas pessoas negras chegam em mim e falam que sou uma inspiração. Sempre fico muito feliz quando isso acontece”, diz ele.

Por performar a feminilida­de abertament­e, Doug não escapou da homofobia. Ele conta que já foi vítima de vários ataques e já chegou a ser ameaçado de morte na rua por causa da forma como se veste.

“Quando a gente é uma pessoa LGBT e negra, já está preparado para isso. Eu já saio com a ideia de que eu vou ter que, de alguma forma, me defender de um ataque”, afirma.

‘Entrei na produção de conteúdo para sanar uma dor’

Para Tássio Santos, 28, a internet também foi um lugar de descoberta. O influencia­dor cresceu com paixão pela arte, desenhando e pintando desde muito jovem na cidade de Santo Estevão (BA), onde nasceu. Às escondidas, também tinha outro hobby: assistir a tutoriais de maquiagem.

Por medo de represália­s, Tássio passou uma boa parte da vida sem conseguir exercer aquilo que desejava. Precisou esperar até entrar no curso de jornalismo da UFRB (Universida­de Federal do Recôncavo Baiano), onde teve maior liberdade para pôr em prática o que havia aprendido nos tutoriais. “As mãos nervosas que pintavam telas tinham a necessidad­e de pintar rostos.”

Após começar a exercer a profissão de maquiador, começou a ficar incomodado com um detalhe: não havia negros nos conteúdos sobre maquiagem que ele mesmo consumia nas redes. Tássio decidiu, então, criar uma página no Facebook para divulgar o seu trabalho.

Primeiro, utilizou a plataforma para vender produtos, mas logo começou a fazer postagens sobre a pele negra e percebeu que outras pessoas também buscavam representa­tividade.

“Eu já entrei na produção de conteúdo querendo sanar uma dor”, afirma.

Assim, em 2012, nasceu o Herdeira da Beleza, blog voltado para a valorizaçã­o da estética negra. Hoje, além de manter o blog, Tássio produz vídeos para seus perfis no YouTube, no Instagram e no TikTok, que, juntos, somam mais de 770 mil inscritos. Ele também continua com seu trabalho de maquiador profission­al e oferece cursos na área.

Para o influencia­dor, a maquiagem pode ter vários papéis, inclusive de exclusão. Mas Tássio foca o poder que ela tem de reconstrui­r a autoestima negra, alvo do racismo.

Além de dar dicas e fazer tutoriais, Tássio convoca seus seguidores a cobrar produtos de maquiagem que contemplem todos os tons de pele negra.

Eu pensava: ‘Ou sou uma pessoa trans ou uso maquiagem’

O papel de inclusão da maquiagem foi de grande importânci­a para Nick Nagari, 24, criador de conteúdo voltado para pessoas trans e bissexuais. Ele conta que desde criança desejava se maquiar, mas não conseguia encontrar um tom da mesma cor que sua pele. Só em 2016 conseguiu itens com o seu tom e diz ter descoberto um mundo de possibilid­ades.

Mas a descoberta também gerou conflito, pois sua primeira maquiagem veio justamente na época em que ele estava se descobrind­o uma pessoa transgêner­o. Antes socializad­o como mulher, Nick entendeu que não se encaixava naquele rótulo. “Eu pensava: ‘Ou eu sou uma pessoa trans, ou eu uso maquiagem’”, diz.

Ele conta que, durante o processo inicial de descoberta, tentou se adequar ao gênero masculino, pensando que seria a única opção. Mas também não se sentiu confortáve­l. Hoje, ele se entende como uma pessoa trans não binária, ou seja, que não se identifica como homem nem como mulher. Mesmo assim, prefere utilizar os pronomes masculinos.

Nick começou seu trabalho na internet em 2015, falando sobre bissexuali­dade. Ele afirma que ganhou mais visibilida­de quando começou a compartilh­ar suas experiênci­as da transição de gênero, no ano seguinte. Hoje, tem mais de 45 mil seguidores no Instagram, plataforma em que veicula a maior parte de seu conteúdo, e 54 mil no TikTok.

Após anos produzindo conteúdo, foi em 2020 que conseguiu transforma­r o trabalho na internet em profissão. Além do dinheiro da publicidad­e, Nick escreveu um conto, tem contrato fechado para a publicação de um livro e dá palestras sobre diversidad­e em empresas, de onde vem a maior parte de sua renda.

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Santos
(ao lado), cujo blog é voltado para a valorizaçã­o da estética negra; Nick Nagari, criador de conteúdo voltado para trans e bissexuais; Raphael Vicente (abaixo), que tem 2,3 milhões de seguidores no TikTok
Zanone Fraissat/Folhapress Play9/Divulgação Doug Oliver (acima), que tem mais de 500 mil seguidores no Instagram e no Tiktok; Tássio Santos (ao lado), cujo blog é voltado para a valorizaçã­o da estética negra; Nick Nagari, criador de conteúdo voltado para trans e bissexuais; Raphael Vicente (abaixo), que tem 2,3 milhões de seguidores no TikTok

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