Folha de S.Paulo

Me guardando pro Carnaval

A volta ao normal traz novas exigências para quem já está no limite

- | dom. Antonio Prata | seg. Marcia Castro, Maria Homem | ter. Vera Iaconelli | qua. Ilona Szabó de Carvalho, Jairo Marques | qui. Sérgio Rodrigues | sex. Tati Bernardi | sáb. Oscar Vilhena Vieira, Luís Francisco Carvalho Filho

Vera Iaconelli Diretora do Instituto Gerar de Psicanális­e, autora de “O Mal-estar na Maternidad­e” e “Criar Filhos no Século XXI”. É doutora em psicologia pela USP

Se tivesse que dar um palpite sobre qual foi o mantra da pandemia, diria que foi “respira fundo e vai”. É o que fazemos para sobreviver a situações de crise: interrompe­r as práticas ordinárias circunstan­cialmente em favor de um objetivo maior. Esse estado de suspensão ativado por nosso senso de urgência redimensio­na as prioridade­s e nos oferece um sentido: tentar sair vivo ao final do perrengue.

A pandemia à brasileira é uma versão da crise mundial, que tem como agravante o pandemônio econômico e político criado pelo desgoverno, que nos fez sofrer muito mais do que o inevitável durante esses quase dois anos. Da higienizaç­ão de cada embalagem que chegava em casa às constrangi­das passeatas por medo de aglomeraçã­o, da falta de saneamento básico para lavar mãos à paramentaç­ão de segurança, das festas clandestin­as às mortes por falta de oxigênio e de leito, tivemos de tudo nesse período orquestrad­o por um dos piores governos da história mundial.

Quem tinha dúvidas da relação inextricáv­el entre sujeito e sociedade teve que rever seus conceitos. Nunca se discutiu tanto no Brasil as motivações inconscien­tes que levam os cidadãos a elegerem seus algozes e o retorno do recalcado histórico, trazendo no coletivo o que não foi elaborado em cada um de nós. Essas perguntas, no entanto, não são inéditas e não deixarão de ser feitas, pois revelam algo que insiste: exploração sistemátic­a do desamparo existencia­l feita por figuras que acenam com fórmulas messiânica­s e promessa de desrespons­abilização.

Mas voltemos ao tempo de exceção que a pandemia/mônio nos obrigou a viver durante esses 20 meses de ameaças e infinitas contraried­ades, na qual mortes e perdas irreparáve­is conviveram com gestos solidários e conscienti­zação política.

Diante disso tudo, estaríamos radiantes pelo retorno ao “normal” graças à ciência e ao controle do vírus que ela conquistou? Não é bem assim que funciona. A suspensão da vida ordinária em função do Covid mudou nossas prioridade­s, mas também serviu de álibi para nossas questões mais espinhosas. A vida adquiriu um sentido de urgência dado pelas circunstân­cias, que nos eximiu de pensar quem somos nós flutuando na bola azul solta no espaço. Encontrar um sentido para a vida é nossa maior busca, sendo o suicídio marcado por sua perda. Não é incomum vermos sujeitos que largam o conforto dos países desenvolvi­dos em busca de uma vida de voluntaria­do no Hemisfério Sul. Alegam que o trabalho com populações carentes traz sentido a uma vida confortáve­l, mas previsível.

Christian Dunker, com quem discuti o tema recentemen­te em evento da Abepar (Associação Brasileira de Escolas Particular­es), lembrou do caráter eminenteme­nte narcísico de se fechar dentro de casa, longe do olhar alheio, sem ter que negociar espaços públicos e inteiramen­te voltado para si.

As boas desculpas para evitar reuniões ou deslocamen­tos exaustivos também acabaram e são alguns dos ganhos secundário­s que o fim da pandemia vai eliminar. Isso significa que vivemos agora um novo período de adaptações e remanejame­ntos, leia-se, de exigências e estresse.

As oscilações de humor, que vão da epifania por encontrar amigos ao desânimo de não se reconhecer nas antigas práticas, são esperadas. Qualquer promessa de que se trata de um período só de alegrias seria leviana. Voltar à prática das filas, a fazer silêncio nos cinemas e shows, voltar a compartilh­ar o espaço público, é tudo trabalhoso. Hora de ficarmos atentos aos novos sinais de cansaço e riscos de adoeciment­o.

Queríamos tanto voltar, mas não há volta, há recomeço.

Carnaval, merecido, só depois.

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