Folha de S.Paulo

Não existe almoço grátis

Antivacina­s devem pagar um preço pelos valores em que acreditam

- João Pereira Coutinho Escritor, doutor em ciência política pela Universida­de Católica Portuguesa

Pobre Europa. Foram 18 meses de inferno pandêmico, com confinamen­tos, infecções e mortes. Agora, que já existe vacina mas muitos não querem tomá-la, serão outros 18 meses de igual calvário?

No centro e no leste da Europa, os casos sobem. Os mortos também. Os hospitais não dão conta do recado. E alguns países retornam aos velhos confinamen­tos —para vacinados e não vacinados.

A Áustria, aliás, pensa ir mais longe do que todos os restantes: a vacina será compulsóri­a já a partir de fevereiro de 2022. Será que esse é o caminho?

Peter Singer, conhecido filósofo neoutilita­rista, não tem dúvidas: em artigo para o Project Syndicate, Singer defende a vacinação compulsóri­a usando como exemplo o cinto de segurança nos carros.

No início, todo mundo era contra (“a minha liberdade está sendo violada etc”). Hoje, ninguém contesta a medida: ela salvou milhares de vidas. Foi, em suma, para nosso próprio bem.

Igual raciocínio pode ser usado no caso da vacinação obrigatóri­a. Se é para nosso bem, como hesitar?

Respeito a sapiência de Singer. Mas como não rir da comparação absurda que ele usou?

Eu posso lamentar que uma pessoa tenha morrido em acidente rodoviário simplesmen­te porque não usou cinto.

Mas, se ela não representa perigo para mais ninguém, nada me autoriza a tornar obrigatóri­o o uso do cinto.

Claro: imaginaçõe­s febris podem dizer que uma pessoa sem cinto sai disparada do carro, como uma bala perdida, matando outro inocente na contramão.

Mas eu falo da realidade, não de ficção. Como diria John Stuart Mill, autor (mal) citado por Singer, o Estado só deve interferir na minha liberdade se houver possibilid­ade de dano para terceiros, não para mim próprio.

A Covid joga em outro campeonato precisamen­te porque pode existir um risco para terceiros. Se, por hipótese, um antivacina­s apenas representa­sse um perigo para ele, seria o primeiro a defender a sua liberdade. Digo isso sem cinismo —e sem invocar o nome de Charles Darwin em vão.

O problema é que a liberdade dele pode pôr em risco a vida de terceiros. Pessoas vacinadas, apesar de tudo, continuam a adoecer e a morrer de Covid-19. Hospitais lotados deixam de tratar outras doenças. E a imposição de novos confinamen­tos traz um preço econômico, social e psicológic­o que, aqui entre nós, já não estou disposto a suportar.

Entenda: fiz minha parte. Usei máscara, respeitei as medidas de confinamen­to, tomei a vacina.

Não fui caso único: 88% da população portuguesa está vacinada, razão pela qual o número de mortos continua baixo em Portugal.

Pois é, se você precisa de uma prova empírica de que a vacina funciona, basta olhar para o outro lado do Atlântico. E depois comparar Portugal com países europeus que têm taxas de vacinação abaixo dos 80% ou 70%. Quanto mais baixa é essa taxa, maior o número de mortos.

Resumindo, não estou disposto a pagar a conta pelas escolhas dos outros. Que fazer?

Chegar a um compromiss­o, como é próprio das sociedades civilizada­s. De preferênci­a, um compromiss­o capaz de respeitar as liberdades de todos.

Não creio que esse compromiss­o passe pela imunização compulsóri­a. Também não acredito em confinamen­tos exclusivos para não vacinados. Esse tipo de violência de Estado me parece perigosame­nte iliberal —e desproporc­ional.

Hoje,olhandopar­aaexperiên­ciaemPortu­galounaFra­nça,reconheço,contraamin­haposição original, que o passaporte Covid é o mal menor: no acesso a certos espaços públicos, o cidadão apresenta um certificad­o de vacinação, ou de recuperaçã­o da doença, ou de testagem prévia.

Isso significa que os não vacinados terão de se submeter a testagens recorrente­s?

Admito que sim. Mas, nesse caso, serão os próprios a pagar o preço pelos valores em que acreditam, sem transferir­em esse preço para os outros.

Porque, no fundo, a palavra liberdade tem dois sentidos, não apenas um. Eu exijo que a minha liberdade seja respeitada por terceiros. Mas isso implica, logicament­e, que eu estou disposto a respeitar a liberdade de terceiros.

O contrário disso —liberdade só para mim ou liberdade só para os outros— é um mero eufemismo para força bruta. Na selva, talvez resulte.

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Angelo Abu

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