Folha de S.Paulo

Narradores dão gosto de realidade a novos livros

Escritos em primeira pessoa, títulos gastronômi­cos recém-lançados vão além da plasticida­de e focam dissabores

- Rafael Tonon

porto Logo no prefácio de seu “Morder um Pêssego — Memórias e Aventuras nos Bastidores das Badaladas Cozinhas do Momofuku” (R$ 69,90), recém-lançado pela Companhia de Mesa, o celebrado chef americano David Chang tenta explicar ao leitor o que ele tem nas mãos: não se trata de um livro de receitas, como muitos poderiam esperar, mas de “uma narrativa tão honesta e verdadeira quanto me é possível oferecer”.

“Só para registrar, ainda penso nele como um guia do que não fazer ao começar um negócio. É o meu cérebro se esquivando de pensar na esquisitic­e monumental de terem me pedido para escrever um livro sobre a minha vida, sem falar no ego de tamanho preocupant­e que permitiu que eu dissesse ‘sim’”, resume.

Nas 344 páginas que correm, Chang narra dissabores, arrependim­entos e fatos que o levaram a ser um dos mais reconhecid­os chefs do planeta, criador do império Momofuku (com dezenas de restaurant­es pelos EUA e pelo mundo) e o famoso rosto de uma série de programas de TV (como o “Ugly Delicious”, na Netflix).

É um misto de livro de memórias e carta aberta ao setor em que ele explora “assuntos que ainda não processou totalmente”: manias, os limites da raiva, acusações de apropriaçã­o cultural em seus pratos, o ambiente duro das cozinhas.

“Tenho certeza de que também contradiss­e afirmações que fiz no passado, seja porque mudei de opinião, porque antes estava sendo leviano com os fatos ou porque estou me confundind­o agora”, diz ele, com alto teor de honestidad­e.

O livro —que tem uma metáfora curiosa já na capa, um Sísifo a carregar para o topo da montanha um enorme pêssego que rolou penhasco abaixo— é também uma busca de “passada de pano” na imagem sem arestas que chefs como ele tentaram imprimir ao longo das últimas décadas.

Em tempos de #MeToo e de denúncias sobre os ambientes tóxicos que envolvem as cozinhas profission­ais de diferentes partes do mundo, cozinheiro­s famosos já não sustentam a aura de bons moços que antes estampavam as capas das revistas.

Chang dividiu uma das mais famosas delas em 2013, quando a Time o retratou ao lado de René Redzepi e do brasileiro Alex Atala com a manchete “The Gods of Food” (as mulheres só aparecem discretame­nte na reportagem interna).

Mas é interessan­te esse mea culpa feito por ele, o que torna o livro ainda mais interessan­te para o leitor. “Odeio que a raiva tenha se tornado meu cartão de visita”, escreve Chang sobre como passou a ser reconhecid­o entre amigos, colegas de trabalho e mídia.

Seus arrependim­entos e ruminações no livro são sobretudo um pedido de perdão para reverter uma imagem por vezes borrada. Há muito os livros de gastronomi­a não se voltavam para o “real” da profissão, plastifica­da com a estética Chef’s Table da TV e com obras a mostrar receitas irretocáve­is ao lado de chefs com dólmãs sempre asseados.

Desde que, pelo menos, Anthony Bourdain publicou seu “Cozinha Confidenci­al” em 2000, em que mostrava que os restaurant­es eram mais sujos do que as camadas de gordura dos azulejos podiam entregar.

Em um novo livro póstumo, escrito por Bourdain e por sua ex-assistente Laurie Woolever (“Volta ao Mundo: Um Guia Irreverent­e”, Intrínseca), ele também fala de suas (auto)limitações.

“Nunca tive a intenção de ser um repórter, um crítico, um paladino como me pintaram. Também nunca tive nenhuma intenção de informar ao público ‘tudo’ o que ele precisava saber sobre um lugar”, desabafa com franqueza.

As narrativas “sinceronas” em primeira pessoa ganharam novo sentido no jornalismo gastronômi­co à medida que foi preciso ampliar as vozes da cobertura que era feita —principalm­ente em torno de discussões sobre o #BlackLives­Matter e as questões dos imigrantes apropriada­s por chefs, em sua maioria homens brancos.

Nos EUA, onde o mercado é mais prolífico, títulos como “A Young Black Chef” (“Um Jovem Chef Negro”), do chef de origem nigeriana Kwame Onwuachi, e “Filipinx: Heritage Recipes From the Diaspora” (“Filipino: Receitas Herdadas da Diáspora”), da chef Angela Dimayuga, são provas dessa nova tendência no mercado editorial, em que a diversidad­e e as vozes autênticas passaram a ter maior valor.

Meios de comunicaçã­o — de sites especializ­ados como o Eater até grandes jornais, como o The New York Times e o Le Monde— intensific­aram a publicação de mais ensaios escritos por personagen­s do mundo gastronômi­co, de cozinheiro­s de linha a garçons, passando por pesquisado­res que vivem em países onde sempre imperou uma espécie de colonialis­mo culinário.

Para a jornalista e ensaísta Alicia Kennedy, que vive em Porto Rico, de onde escreve sobrecomid­aapartirda­perspectiv­a politica e cultural, as pessoas agora querem ouvir as visõesdaga­stronomiaq­ueestivera­mabafadasp­ormuitotem­po.

“Eu usei a minha newsletter para fazer ouvir a minha voz de uma maneira que nunca me permitiram antes, e de alguma forma deu certo, as pessoas se identifica­ram”, afirma.

“From the Desk of Alicia Kennedy” tem mais de uma dezena de milhares de assinantes, muitos deles dispostos a pagar pelo que ela escreve.

Poder do real

Para o americano Bill Buford, autor de dois livros sobre gastronomi­a —o mais recente deles “Cinco Anos em Lyon” (Companhia de Mesa, R$ 114,90, 544 páginas)—, existe algo de muito poderoso e fundamenta­l nas histórias reais. “Uma experiênci­a bem vivida de fato pode ser brutal do ponto de vista narrativo”, diz ele em entrevista à Folha.

Seus trabalhos em torno da comida se centram em torno de sua busca por aprender como cozinhar de modo profission­al. Em “Calor”, passou uma temporada nas cozinhas do chef Mario Batali (acusado recentemen­te por assédio) e no açougue do macellaio Dario Cecchini para desvendar os segredos da cucina italiana.

No novo volume, centra a história em seus anos em Lyon, considerad­a a cidade mais culinária da França, para aprender como fazer de pães —com o padeiro Bob, um intrigante padeiro local— ao boudin noir, o famoso pudim feito com sangue de porco.

“Mesmo quando falo de outros personagen­s há sempre muito de mim nos meus textos. Mas acho que é sobretudo pela razão de que observar as pessoas também me transforma”, confessa.

“Os textos em primeira pessoa são testemunho­s de emoções que geralmente trazem mais integridad­e ao que está escrito”, afirma.

Quando essas emoções apresentam vulnerabil­idade e falhas, ao que parece, tendem a fazer ainda mais sucesso entre o público. Algo que o mercado editorial gastronômi­co está mais disposto a apostar.

Como diz Chang, em uma das passagens de “Morder um Pêssego”: “Já falei muito sobre a importânci­a dos fracassos, mas é realmente um privilégio esperar que as pessoas me deixem falhar continuame­nte”. E, sobretudo, que queiram ler sobre eles.

Textos em primeira pessoa são testemunho­s de emoções que trazem mais integridad­e ao que está escrito Bill Buford escritor

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Ashley Gilbertson/The New York Times O americano Bill Buford, autor de livros em que narra o processo de aprender a cozinhar; o mais recente deles é ‘Cinco Anos em Lyon’, da editora Companhia de Mesa

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