Folha de S.Paulo

Imigrante negro não encontra Brasil acolhedor, diz sociólogo

Para pesquisado­r, migrantes africanos e haitianos são alvos de duplo preconceit­o

- Flávia Mantovani

são paulo A imagem do Brasil como uma terra acolhedora não se sustenta se olharmos para seu passado escravagis­ta —ou para o presente de muitos imigrantes negros que chegam ao país. Para o sociólogo Alex Vargem, 41, que cresceu em meio à militância familiar em movimentos afrodescen­dentes e há 20 anos pesquisa a imigração africana em São Paulo, tanto o Estado quanto a sociedade brasileira adotam historicam­ente uma atitude seletiva em relação aos estrangeir­os, baseada na cor da pele.

Isso pode ser constatado, diz Vargem, por vários exemplos antigos e recentes —das leis pós-abolição que incentivar­am a chegada de trabalhado­res da Europa e proibiram a vinda de pessoas da África às dificuldad­es que os imigrantes haitianos e africanos enfrentam atualmente para conseguir bons empregos no Brasil.

Filho de Edna Vargem, ativista que participou nos anos 1970 de “E Agora Falamos Nós”, icônica peça de teatro com elenco exclusivam­ente negro dirigida por Thereza Santos e Eduardo Oliveira, o sociólogo defende uma aproximaçã­o entre os movimentos de afrodescen­dentes brasileiro­s e os de imigrantes e refugiados africanos.

Ele diz que não dá para igualar a migração europeia ao sequestro de africanos escravizad­os ao longo de 350 anos. “Os brasileiro­s com antepassad­os brancos ou asiáticos se orgulham do pai espanhol, do bisavô alemão, japonês. Isso é bonito, é lindo. Mas nós, afrobrasil­eiros, não conhecemos nossas origens porque esses registros foram apagados. Isso é uma ferida aberta.”

Por que você considera que a ideia de que o Brasil é um país acolhedor em relação aos estrangeir­os é um mito?

Nos debates sobre migração, existe aquela frase: “Somos todos migrantes”. Tenho um olhar crítico sobre isso porque, se olharmos para a fundação do Brasil, vemos que o país foi construído à base da escravidão. De qual país acolhedor estamos falando? Um Estado que patrocinou a escravidão, que foi o que mais escravizou pessoas, o último a ter a abolição.

E depois da abolição tivemos políticas higienista­s de embranquec­imento da população brasileira. Além do incentivo à vinda de europeus, houve vários decretos proibindo a entrada de africanos no Brasil.

Os brasileiro­s com antepassad­os brancos ou asiáticos sabem de suas origens, orgulham-se do pai espanhol, do bisavô alemão, japonês. Isso é bonito, é lindo. Mas nós, afrobrasil­eiros, não conhecemos nossas origens porque esses registros foram apagados. Isso é uma ferida aberta. Não dá para igualar à migração europeia o caso desses homens e mulheres que foram raptados, jogados ao mar, que sofreram uma conjunção de violências. Seria romantizar a história.

Atualmente, o acolhiment­o do brasileiro a imigrantes também é seletivo?

Sim. O africano que chega aqui hoje é visto como o refugiado, uma vítima passiva à espera de ajuda. E é claro que tem pessoas que passam por adversidad­es, mas muitos são intelectua­is, profission­ais liberais, estudantes. Temos africanos fazendo pesquisa de ponta em grandes universida­des, mas isso não os exime de serem discrimina­dos, xingados, de sofrerem xenofobia. Muitas vezes a violência que não é manifestad­a contra corpos de negros brasileiro­s é manifestad­a contra corpos de imigrantes que aqui estão.

É comum imigrantes negros descobrire­m o que é racismo aqui?

Acontece muito. Nos países africanos há diferencia­ções do ponto de vista étnico, é outra realidade. Aqui existe o racismo explícito, dos xingamento­s ou da violência, mas existe também o racismo sutil. Para muitos deles, entender isso exige um esforço. Nesse processo pedagógico de compreende­r o Brasil, eles começam a perceber que, mesmo tendo todo o potencial, não conseguem avançar muito.

E aí eu faço uma crítica construtiv­a ao terceiro setor: mesmo nas organizaçõ­es que fazem um trabalho bonito com migração, a gente não vê imigrantes negros —nem afrodescen­dentes brasileiro­s— em postos de coordenaçã­o.

Muitos imigrantes são vítimas do racismo estrutural, mesmo sem reconhecer­em isso. E esse racismo estrutural está produzindo uma massa de pessoas migrando para outros países.

Que outras dificuldad­es os imigrantes negros enfrentam no Brasil?

Já começa com a xenofobia de fronteira. Os que não são brancos têm mais probabilid­ade de serem barrados em aeroportos, mesmo tendo vistos, reserva de hotel e todas as prerrogati­vas. E ainda acontece de africanos chegarem aqui escondidos em porões de navios de carga.

A pessoa está numa rota de fuga, vê um navio com bandeira canadense, por exemplo, dribla a segurança no porto e entra no porão. O navio faz escala em Santos, eles são descoberto­s e enviados a seus países, o que viola o princípio de não devolução [tratados internacio­nais que proíbem a repatriaçã­o de imigrantes que pedem refúgio]. Ou seja, existe a lei, a salvaguard­a jurídica, mas como isso é aplicado na ponta?

Você vê algum paralelo entre esses casos e o passado colonial escravagis­ta?

Podemos fazer algumas reflexões, e uma delas é que nos remete aos navios negreiros. Em 2003, em um navio chinês no Recife, um grupo de africanos foi jogado ao mar pela tripulação. Por sorte, foram resgatados por pescadores. Em 2011, nigerianos foram aprisionad­os em um navio de bandeira turca no porto de Paranaguá porque os agentes de fronteira os considerar­am ameaças à saúde pública e à segurança nacional. Ainda hoje chegam africanos nos porões, sofrendo todo tipo de violência.

A dimensão racial é levada em conta nas políticas públicas para imigrantes no Brasil?

Temos que racializar o debate da migração. O imigrante às vezes é visto como um sujeito abstrato, sem cor. A lei de migração de 2017 foi um grande avanço, mas ainda é preciso garantir aos imigrantes o direito à fala e à esfera de decisão. Não é só estarem de enfeite no conselho, eles devem ocupar esses espaços, não dá para ficar só como antigament­e, em que a pessoa faz a comidinha, canta no coral, todo mundo bate palma e vai embora.

A inclusão pela cultura é limitada?

É muito legal que o brasileiro se aproxime das populações imigrantes pela questão cultural, da comida, da dança. O problema é quando não há outras possibilid­ades, outras portas se fecham e a pessoa só tem aquilo para fazer. Essa é a crítica. É preciso ir além.

Às vezes a sociedade brasileira aceita a pessoa que bate tambor, mas manifesta xenofobia em relação àqueles que transcende­m esses limites.

“Às vezes a sociedade brasileira aceita a pessoa que bate tambor, mas manifesta xenofobia em relação àqueles que transcende­m esses limites

Os movimentos negros brasileiro­s têm interlocuç­ão com as pautas dos imigrantes negros?

Muitos movimentos sociais brasileiro­s não sabem como é a vida do imigrante, e alguns grupos africanos não se reconhecem nas pautas dos movimentos negros brasileiro­s. Nos últimos quatro anos alguns grupos têm se aproximado para construir uma pauta conjunta. Os dois lados estão se conhecendo.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil