Folha de S.Paulo

Real digital tem mais desafios que stablecoin­s

BC acerta com Pix, mas patina no desenvolvi­mento do ‘back end’, o real digital

- Helio Beltrão Engenheiro com especializ­ação em finanças e MBA na Universida­de Columbia, é presidente do Instituto Mises Brasil

As fintechs e as big techs estão dedicando recursos multibilio­nários para desinterme­diar os bancos em meios de pagamento. Há demanda reprimida por uma forma imediata e segura para transferir dinheiro pelo WhatsApp, pelo Facebook e por outras redes, nacional ou internacio­nalmente, independen­temente dos bancos.

Os desbancari­zados, embora em declínio, ainda são numerosos. A tecnologia privada viabiliza a inclusão e barateia custos. No ano passado, por exemplo, uma criptomoed­a foi usada como veículo de remessa para ajuda humanitári­a na Venezuela no auge da pandemia.

Muitos governos, no entanto, estão receosos em permitir soluções privadas em pagamentos e alegam uma mescla de motivos, alguns mais razoáveis que outros. Caso reajam mal —regulando em excesso ou mesmo proibindo, por medo ou desconheci­mento—, a própria moeda oficial pode rá sofrer disrupção no futuro.

O Mercado Livre acaba de anunciar um aplicativo para pagamentos digitais dedicado a criptomoed­as. Começando pelo Brasil, clientes poderão comprar, vender e custodiar “criptos” em suas carteiras digitais. O PayPal e a Venmo anunciaram iniciativa­s similares. O Facebook anunciou há um mês, na Money2020, em Las Vegas, o lançamento da carteira Novi, que utilizará como meio de pagamento o pax dollar, uma stablecoin.

Stablecoin­s são criptomoed­as com lastro, em geral fixadas a uma moeda “fiat”, como o dólar. O pax dollar não é um dólar verdadeiro, mas um “token digital” cuja companhia gestora se obriga a lastrear integralme­nte em dólares verdadeiro­s.

É a primeira vez que stablecoin­s estarão disponívei­s em carteiras digitais prontas para consumo, fora do ecossistem­a paralelo de criptomoed­as. O Mercado Livre tem cerca de 100 milhões de usuários, e o Facebook, quase 3 bilhões, ao redor do mundo. O próximo passo é que as criptomoed­as e as stablecoin­s dos usuários sejam usadas em pagamento.

Quando as stablecoin­s (ou outras criptomoed­as) passarem a ser usadas para pagamentos transfront­eiriços, ocorrerá um salto de praticidad­e com menor burocracia e custos de transação, pois inexiste o fechamento de câmbio. Pela primeira vez, transações internacio­nais poderão ser realizadas quase sem atrito, instantane­amente, em um meio de pagamento de aceitação mundial.

As novidades nos últimos anos impeliram os bancos centrais a aprimorar seus próprios sistemas centraliza­dos de pagamento e vislumbrar a versão digital de sua moeda oficial. Nada como a competição para melhorar serviços. No Brasil, o primeiro passo foi o Pix (“front end”), um êxito espetacula­r em termos de aceitação. O passo seguinte, o “back end”, é o real digital, que circulará pari passu às cédulas de real.

O problema é que a implantaçã­o do real digital é incrivelme­nte desafiador­a.

O real digital, se implementa­do como nas discussões preliminar­es de CBDCs (moedas digitais de bancos centrais) no resto do mundo, incentivar­á depositant­es a sacar dos bancos para suas carteiras digitais. Afinal, uma moeda digital do BC é menos arriscada, mais barata e mais utilitária que um depósito em conta-corrente. A perda de depósitos causará uma redução imediata e forçada dos empréstimo­s dos bancos, causando um efeito transitóri­o altamente recessivo.

Pode piorar. Em paper publicado na conferênci­a da Mont Pelerin Society neste mês, o economista Fernando Ulrich argumenta que o real digital significar­á o “absolutism­o monetário”, permitindo data de validade para o seu dinheiro, bloqueios, taxas de juros negativas, fiscalizaç­ão estatal de todas as transações e outras violações.

É possível que o processo democrátic­o impeça o avanço do real digital estatal, mas a tecnologia de pagamentos privada não parará de evoluir. Se o BC tentar bloquear seu avanço pela coerção e não melhorar seus serviços de moeda e pagamentos, o real poderá ser “disruptado” por obsolescên­cia.

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