Folha de S.Paulo

A potência dos afetos

Mais do que desejar ‘força’ para quem tem desafios, podemos nos fazer presentes

- Jairo Marques Jornalista, especialis­ta em jornalismo social pela PUC-SP. É cadeirante desde a infância

Uma querida amiga sofreu um acidente doméstico grave e, como consequênc­ia, correu o risco de amputar um dos dedos da mão.

Depois do atendiment­o de emergência, de cirurgias complexas, de dores e de horrores internos, ela se recupera, lentamente, bem.

Do trauma à ambientaçã­o em sua nova realidade, que passa por reabilitaç­ão motora e reaprendiz­ado de movimentos, pelo reconhecim­ento de uma “nova mão” reconstruí­da, de uma nova estética, ela colocou como fundamenta­l em seu desafio a presença real dos bons pensamento­s, dos desejos de melhora emanados por toda a gente.

Ela escreveu assim, na postagem em uma rede social de uma fotografia de um belo vaso de flores que recebeu em casa de algum fraterno: “Carinho que cura”.

Passamos despercebi­dos, geralmente, pelo potencial curativo de um apoio, um afago, um beijo, um abraço, uma mensagem de fé para quem passa por turbulênci­as do viver.

Dar concretude à esperança dos outros por dias melhores tem impactos inimagináv­eis e reais.

Mais do que desejar “força” para quem tem desafios a enfrentar, podemos nos oferecer a compartilh­ar um pouco do peso de uma situação nos fazendo presentes em falas, gestos, atitudes sinceras e abrindo bem os olhos para enxergar os gritos silencioso­s de quem passa por perrengues.

E isso não é necessaria­mente fácil. Para conseguir chegar ao efeito da sensação de “cura” do outro, temos de domar nossos famigerado­s leões internos e reclamões que urram diuturname­nte atrás de satisfazer apenas a si mesmos, esquecendo que há outras centenas de bichos famintos na selva.

Um dia desses, minha filha biscoita fazia lamentos de uma saudade e ficou acabrunhad­a, largada no sofá da sala, remoendo seu sentimento, estirada ao sofrer.

Em princípio, adotei o caminho mais fácil, o tamponamen­to simples, dizendo que aquilo passaria logo e voltei para a reflexão de minhas próprias lamúrias de ausências.

Minutos depois, provavelme­nte beliscado pelo anjo de guarda de minha menina, guardei meu calundu no bolso, peguei a pequena no colo, massageei seu coração e falamos sobre chegadas e partidas, sobre perdas e ganhos, sobre o lado bom da saudade, que pode ser reviver momentos de presença ou o fim da espera e a hora de um reencontro.

Ela sorriu e voltou a brincar. Ser afetuoso e ajudar a curar pode exigir da gente despir-se das próprias urgências para oferecer a calma, pode representa­r redimensio­nar o tamanho dos próprios poços para que o outro veja a água no fundo do seu.

A diferença entre olhar com distanciam­ento a ferida alheia e mover-se no sentido de criar um unguento para cicatrizál­a é brutal.

A gente tem um dia melhor quando o bom-dia vem sorridente, a gente se fortalece quando sente o choro é compreendi­do e compartilh­ado, a gente cresce mais seguro quando consegue dar vazão a sentimento­s incompreen­didos, a sensações que nos oprimem.

O afeto liberta de prisões emocionais erguidas sem tréguas pelos tantos dissabores implicados no existir, nas trombadas com os desafetos. Ele reorienta a nossa coragem de recomeçar, de amar mais uma vez, de compreende­r aquilo que sufoca, machuca.

Com toda a velocidade, estamos voltando às ruas, ao mundo, que ainda está em pandemônio­s e cheio de dores.

Sejamos mais afetuosos.

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