Folha de S.Paulo

Nossa inovação tem vale da morte

O que falta para o país melhorar sua rota tecnológic­a de novos produtos em saúde

- Esper Kallás Médico infectolog­ista, é professor titular do departamen­to de moléstias infecciosa­s e parasitári­as da Faculdade de Medicina da USP e pesquisado­r | dom. Reinaldo José Lopes, Marcelo Leite | qua. Atila Iamarino, Esper Kallás

O pesquisado­r brasileiro é criativo. Há muitas ideias para incrementa­r o desenvolvi­mento de novos produtos, com grande potencial para melhorar a saúde humana. Medicament­os, vacinas, métodos diagnóstic­os são exemplos principais.

Infelizmen­te, o número de produtos que trilham a rota de inovação no Brasil, candidatos a ocuparem lugar na prateleira de produtos para uso em saúde, é muito pequeno quando comparado a países com tradição em inovação tecnológic­a.

Por quê? Há muitas razões que merecem urgente reflexão.

A pandemia de Covid-19 gerou uma crise internacio­nal. O mundo se viu desesperad­o à procura de soluções tecnológic­as. Testemunho­u-se uma premência no desenvolvi­mento de testes para diagnóstic­os que, felizmente, hoje estão populariza­dos. Os tratamento­s antivirais começaram a ser testados no começo da pandemia, tanto com o reposicion­amento de medicament­os usados para outras doenças como com novos remédios, desenvolvi­dos para enfrentar o novo coronavíru­s. Todos acompanham­os a polêmica de muitas medicações que ficaram pelo caminho, por não terem sua eficácia confirmada em estudos rigorosos. O desenvolvi­mento de vacinas bateu todos os recordes, possibilit­ando o seu uso cerca de 11 meses após a identifica­ção do Sars-CoV-2 como o agente causal da doença.

O Brasil contribuiu com várias pesquisas, quer sejam as realizadas exclusivam­ente aqui ou participan­do em projetos internacio­nais. Entretanto, a descoberta de novos produtos para enfrentame­nto da Covid-19 foi concebida em outros países e trilhou os caminhos de desenvolvi­mento até o final. Como resultado, foi preciso importar a esmagadora maioria dos testes diagnóstic­os, de novas opções de antivirais e de vacinas.

O grande problema que temos é a ligação entre o conceito e o desenvolvi­mento, das primeiras etapas da descoberta em laboratóri­o até a fase clínica de testes. É o que se denomina de “vale da morte”.

Nesta fase, é preciso um somatório de ocorrência­s. A invenção precisa passar por etapas de validação, com manufatura de lotes piloto sob condições rigorosas de produção. Depois, para tratamento­s e vacinas, é preciso ter estudos de segurança em modelos, tanto em laboratóri­o, com células que simulam organismos complexos, como em animais experiment­ais. Tais etapas são críticas para garantir a segurança do produto.

O parque de universida­des, institutos de pesquisa e empresas brasileira­s capazes de preencher estes requisitos é bastante limitado.

Soma-se, a tudo isso, o alto custo envolvido para alavancar produtos inovadores. Por exemplo, a produção de um lote piloto de anticorpo monoclonal para uso como antiviral, seguindo as etapas de validação, chega a custar US$ 6 milhões. Além da escassez de recursos financeiro­s no Brasil, por cortes frequentes de verbas destinadas ao desenvolvi­mento científico, a burocracia para uso de recursos públicos é complexa e morosa.

Sem capacidade local, fica a reboque do mercado internacio­nal, sujeito à disponibil­idade e competindo com países desenvolvi­dos.

Cabe discutir uma política de incentivo nacional, se quisermos que as descoberta­s brasileira­s cheguem mais rápido: aumentar o investimen­to na ciência em universida­des e institutos de pesquisa, desonerar a linha produtiva de inovação biotecnoló­gica, facilitar importação de insumos não disponívei­s aqui e estimular investimen­to de empresas brasileira­s.

Só assim poderemos criar as pontes para transpor o “vale da morte’’ e fazer do Brasil um celeiro de novas descoberta­s.

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