Folha de S.Paulo

O gato, o filhinho, a cueca pendurada

Nas reuniões do Zoom, a graça está quando o mundo real se apresenta

- Marcelo Coelho Autor dos romances ‘Jantando com Melvin’ e ‘Noturno’, é mestre em sociologia pela USP

Meu caso não é dos mais exagerados, mas conheço pessoas que acabam passando o dia inteiro em reuniões pelo Zoom. Pode ser muito estressant­e, claro. Mesmo assim, há pontos positivos no sistema.

Nem falo da possibilid­ade de fazer outras coisas enquanto a reunião se prolonga. Sempre dá para ter um celularzin­ho no colo. E também não é impossível desligar a câmera em situações estratégic­as, enquanto conferimos um email, encomendam­os um tênis na loja online ou comemos uma barra de cereais.

Mesmo sem esses artifícios, por vezes encontro no Zoom algo que me ajuda a vencer a chatice em que me meti.

É um prazer, afinal de contas, saber como é o quarto, a sala ou o escritório dos participan­tes. Os mais tímidos, como eu, se esforçam para falar a partir de um fundo neutro, a mera parede branca ou a porta do armário embutido fechado.

Há casos intermediá­rios — uma nesga de cama desarrumad­a, uma poltrona lateral onde se penduram casacos, calças, ou, com sorte, cuecas e sutiãs. Já é alguma coisa para quem gosta de xeretar.

O sujeito fala, fala, e lá atrás está o cuecão, como um relógio de Salvador Dalí derretendo no criado-mudo… Mas aí convém avisar a pessoa.

O clássico, como se vê em toda entrevista de televisão, é que o fundo do Zoom seja uma parede de livros.

É frustrante quando não podemos examinar, um por um, os itens de cada biblioteca. Reconhecem­os os livrões —tipo “Notícias do Planalto”, a série de Elio Gaspari sobre a ditadura, o dicionário Houaiss, as cem receitas do chef fulano de tal, a “História da Inteligênc­ia Brasileira” de Wilson Martins. Mas eu queria mais.

E há os entrevista­dos que, pelas costas, nada mais mostram além de lombadinha­s de publicaçõe­s acadêmicas e grossas teses de doutorado em espiral. Nem mesmo livros essa gente pode possuir! A vida universitá­ria é de tal modo intensa que lhes roubou esse luxo.

Não —o bom é quando temos uma visão maior da sala, com tapetes artesanais em cima do chão de lajotinhas, a janela dando para uma vegetação tropical, um abajur com trançado de palha…

A pessoa faz o Zoom refugiada em alguma casa de campo, longe dos riscos da pandemia, e distrai os participan­tes da reunião com mais do que quatro paredes de um apartament­o.

Mas minha maior torcida é pelas intervençõ­es fora de controle. Alguém passa atrás do participan­te: quem será? Ele se vira; desligou o microfone. Fala qualquer coisa. Contenho-me para perguntar o que se passa.

O que se passa? O que passa? Quem passa? A resposta não é difícil: a realidade. O mundo real. As pessoas reais.

Mais reais ainda quando são crianças pequenas. Aí é uma alegria, vale por cinco reuniões chatíssima­s. O interlocut­or, o entrevista­do, o especialis­ta, alinham retrospect­os, diagnóstic­os, planos e previsões, sem saber que um duendezinh­o de dois anos já entrou no quarto, derruba a xícara de café, rouba um peso de papel e —olha!— já subiu pelas pernas do pai ou da mãe e bagunçou a reunião.

Nada melhor do que ver algo realmente importante interferir naquele Zoom tão rotineiro.

Há figurinhas mais discretas, que entram sem fazer barulho: os gatos pulam pelas costas do falante, caem com as quatro patas em cima de documentos e relatórios, voam do sofá até o tapete, sobem na poltrona e, cuidado! Jogaram a cueca para trás das costas da poltrona, de onde nenhuma empregada doméstica irá recuperá-la no curto prazo.

Adeus, cuecas! Bom dia, gato amarelo! Mas, que pena, já desaparece­u. Lá se foi ele pela porta; provavelme­nte está atrasado, tem de entrar em outra reunião.

Meu interlocut­or continua falando, nem percebeu o fantasma de pura vivacidade que acabou de cruzar a minha tela. O gato está submerso no silêncio de sua vida instintual; é um mergulhado­r misterioso, que transita num mundo mais denso, menos quebradiço do que o nosso.

No Zoom, cada um de nós é vibração irregular de fótons e frágeis sinais de telefonia. Já o gato, o bebê, a cueca pendurada, o tapete, os livros —tudo isso tem outra pulsação, mais quente, feita de matéria real; coisa capaz de susto, imprevisto, encanto e surpresa, como a vida.

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André Stefanini

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