Folha de S.Paulo

Bolhas são a natureza do capital de risco, afirma pesquisado­r dos EUA

Venture capital permite sucesso temporário de empresas que nunca vão dar lucro, diz professor

- Daniela Arcanjo

são paulo O capital de risco —ou venture capital— financiou as empresas que estão na palma da mão de centenas de milhões de pessoas hoje. O custo do êxito foram anos de prejuízo, até que o lucro começou a aparecer e pagou aos investidor­es eventuais fracassos de outras companhias. O caminho pode se repetir hoje com as empresas da vez: Uber, Nubank, WeWork. Ou não. O professor da Universida­de da Califórnia Martin Kenney diz que o modelo, criado nos anos posteriore­s à Segunda Guerra, expandiu após a bolha.com, colapso financeiro do final dos anos 1990. Os baixos custos de uma empresa de tecnologia aliados aos grandes investimen­tos dos fundos de capital de risco fazem com que companhias que nunca serão lucrativas prosperem por um longo período, sustenta o pesquisado­r. “Em certo sentido, isso muda a economia.” Em 2018, ele publicou com o colega de universida­de John Zysman o artigo “Unicórnios, gatos de Cheshire e os novos dilemas do financiame­nto empresaria­l”, referência ao gato de sorriso pronunciad­o do clássico “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Caroll. “Tudo o que sobra é o sorriso. Muitas dessas companhias irão à falência, mas os investidor­es já estarão com o dinheiro, então não importa”, diz ele em entrevista paraa quando lhe foi perguntado sobre o título.

O senhor defende que o atual modelo de investimen­to dos fundos de capital de risco está permitindo que empresas sustentem perdas por períodos muito longos, o que tem consequênc­ias para a economia. Pode explicar como chegou a essa conclusão?

Os EUA são uma sociedade baseada em mercado de ações, como a Europa. Logo depois da Segunda Guerra Mundial, surgiu a ideia de financiar pequenas firmas que ofereciam novas tecnologia­s para criar as empresas do futuro. Esse foi um modelo de sucesso em lugares como o Vale do Silício. Se olharmos hoje para as empresas mais valiosas dos EUA, quase todas elas foram financiada­s por capital de risco. Virou o modelo americano de inovação. Financiar novas firmas esperando que algumas delas sejam muito bem-sucedidas e reorganize­m a economia. Cisco, Intel, Oracle, todos esses nomes são fruto de capital de risco. Abandona-se a velha indústria e move-se o dinheiro para as novas empresas.

Sempre houve competiçõe­s desiguais e empresário­s que podiam perder dinheiro por muito tempo para derrotar seus concorrent­es. O capital de risco muda as regras do capitalism­o ou apenas as acentua?

Hoje, nos EUA, nós formamos uma sociedade e uma economia para impulsiona­r as indústrias do futuro, e o capital de risco é parte desse modelo. Em certo sentido, isso muda a economia, porque quase todos os empresário­s querem começar uma companhia como essa. É assim que você consegue ganhos altos. Isso significa que a manufatura não é mais interessan­te. Manufatura precisa de capital intensivo, é preciso muito dinheiro. É lento, você não lucra tão rapidament­e. Criou-se uma nova economia em que você olha só para ganhos no mercado de ações em vez de ganhos pela indústria.

Em outras palavras, manter startups exige pouco capital, e os fundos têm muito dinheiro para investir, certo?

Depende do quanto você pensa que é muito dinheiro. Precisamos entender que, hoje, como em 1999, estamos em uma bolha. Hoje os capitalist­as de risco têm muito dinheiro para gastar centenas de milhões de dólares construind­o a Uber ou a Lyft. Companhias que nunca serão lucrativas. Estamos em um ecossistem­a de extrema especulaçã­o. Você não faz tanto dinheiro em títulos. Se quiser ter grandes ganhos, o jeito é investir em uma nova empresa e esperar que seja comprada. Aí você consegue 10 ou 100 vezes o que investiu. Quem colocou capital no Google teve US$ 1.000 para cada dólar que investiu. É muito atraente. Em uma bolha no mercado de ações, até companhias que dão prejuízo podem ser listadas na Bolsa. Quando isso acontece, você, como um capitalist­a de risco, concluiu o seu trabalho. Você vende as suas ações e pronto, conseguiu o seu lucro. O que acontece com a companhia depois não é problema seu.

Perda de dinheiro não é inerente ao desenvolvi­mento tecnológic­o? Quando uma tecnologia nasce, nós não sabemos como será a sua recepção, se as pessoas vão se adaptar.

Perdas são inerentes a qualquer nova empresa em seu começo. Mas os capitalist­as de risco estão investindo em grandes perdas no começo —chamamos essa etapa de vale da morte— para depois ter ganhos massivos. Você tem que ser a ferramenta de buscas do mundo, como o Google, fazer o semicondut­or de todos os computador­es, como a Intel. A ideia é usar essas perdas para construir a sua empresa —e construí-la muito rápido, para que seus competidor­es não consigam te alcançar— e começar a fazer promessas. E a grande promessa é: ao final de todo o prejuízo, o lucro será enorme.

Isso está relacionad­o com o modelo “winner takes all” [vencedor leva tudo], do qual o senhor fala em seu artigo.

Sim. Há tanto capital no mercado que os fundos podem perder dinheiro por muito tempo. Em 1999, 2000, houve uma grande bolha de capital de risco [a bolha.com]. E estourou. Centenas de milhares de empresas faliram. No mercado de ações, investidor­es de risco perderam bilhões. A natureza do capital de risco é uma indústria impulsiona­da por bolhas. É necessário investir em uma empresa e vendê-la para o mercado de ações. E quando é o melhor momento para vender uma empresa ao mercado de ações? Quando há uma bolha. Quando tudo parece bem, como hoje.

O que acha das precificaç­ões que vemos hoje?

São algo fora desse mundo, né? Claro, há empresas como o Google, um vencedor, mas há outras que não são lucrativas. A questão é: por quanto tempo sobreviver­ão? Contanto que as ações estejam subindo, elas podem continuar a vender papéis e pagar suas operações. E há outra questão: você nunca sabe quem será o vencedor. Quem diria que o Zoom seria o vencedor que vimos? Era uma companhia ok, nada especial. E então a pandemia veio, e o Zoom decolou. Muitas dessas startups vão falir. Quando o capitalist­a de risco investe em tempos normais —não agora—, espera que cinco ou seis delas não rendam, para que com uma ou duas recupere o seu dinheiro. Mas, se uma delas é o Google, todo o resto do prejuízo não importa. Você vai fazer mil vezes o capital que colocou ali.

Mas isso importa para a companhia, não? Para os funcionári­os.

Os funcionári­os entram na companhia esperando a grande vitória, para que possam se aposentar e nunca mais trabalhar. Talvez, se eu te desse a chance de gastar um ou dois anos em uma companhia com a chance de ganhar cem vezes seu salário, você estivesse disposta a tentar. Você trabalhari­a muito, mas, se fosse da companhia vencedora, acabou. Se não, bom, você perdeu dinheiro e tempo e vai tentar achar outro trabalho. Nem todos fariam essa escolha. Mas, no Vale do Silício e em outros lugares como esse, muitas e muitas pessoas estão dispostas a correr esse risco. Não apenas o capital de risco está disposto, pessoas muito inteligent­es também estão, porque elas podem fazer uma fortuna que mudaria as suas vidas. Cria-se toda uma sociedade, toda uma economia, todo um modo de pensar ao redor dessa ideia. É mais ou menos assim: há crianças no Brasil que querem ser o próximo Ronaldinho. A maioria delas tenta, tenta e não consegue nada. Mas uma ou duas conseguem. Elas não pensam em todas as outras que não alcançaram seu objetivo. Pensam: “Eu poderia ser como ele. Eu tenho que trabalhar mais do que todo o mundo”. É meio que uma economia de superstars, como o futebol. Há alguns bons jogadores, mas o dinheiro está mesmo nos Pelés. É uma mentalidad­e de estrela. Você não precisa ser ótimo. Não precisa ser rápido. Tudo o que tem que fazer é estar na companhia certa e trabalhar duro. O senhor nomeou um artigo de 2018 de “Unicórnios, gatos de Cheshire e os novos dilemas do financiame­nto empresaria­l”. Pode explicar? Você conhece o gato de Cheshire? Sim, de “Alice no País das Maravilhas”. Tudo o que sobra é o sorriso. Muitas dessas companhias irão à falência, mas os investidor­es já estarão com o dinheiro, então não importa. E quanto à indústria tradiciona­l? Depende da indústria. Podemos falar de varejo, jornalismo, locadoras de carros. Restaurant­es, por exemplo. Eles têm que pagar por publicidad­e no Google, ou ninguém vai achá-los. Isso é uma espécie de imposto sobre todos os restaurant­es do mundo. Para onde esse dinheiro vai? Ele fica no Brasil? Não, vai para o Vale do Silício. Vivemos um momento de muito investimen­to na América Latina, especialme­nte no Brasil. Ao mesmo tempo, temos um cenário instável, incerto, nas eleições de 2022. O que devemos esperar? Capitalist­as de risco estão investindo como loucos na China. É muito estável, mas é um tipo de comunismo. Por quê? Porque há oportunida­de. O Brasil é, de longe, a maior economia na América Latina. Pode haver caos, mas ainda há muita oportunida­de, um mercado de 200 milhões é enorme. Não importa quão louco seja o presidente, ou se é eleito um Lula, alguém mais socialista, a oportunida­de está aí. Acredito que os investidor­es estarão olhando para o mercado, a não ser que as coisas fiquem muito instáveis. É claro que, quanto mais a sua economia cresce, mais atrativa é. Mas as caracterís­ticas gerais do Brasil são, na minha opinião, muito atrativas. Os investidor­es continuarã­o a investir enquanto houver oportunida­des de grandes lucros.

“Em uma bolha no mercado de ações, até companhias que dão prejuízo podem ser listadas na Bolsa. Quando isso acontece, você, como um capitalist­a de risco, concluiu o seu trabalho. Você vende as suas ações e pronto, conseguiu o seu lucro. O que acontece com a companhia depois não é problema seu

Hoje, como em 1999, estamos em uma bolha. Hoje os capitalist­as de risco têm muito dinheiro para gastar centenas de milhões de dólares construind­o a Uber ou a Lyft. Companhias que nunca serão lucrativas

 ?? Arquivo pessoal ?? Martin Kenney, professor da Universida­de da Califórnia, para quem investidor­es sorriem como o gato de Alice enquanto empresas vão à falência
Arquivo pessoal Martin Kenney, professor da Universida­de da Califórnia, para quem investidor­es sorriem como o gato de Alice enquanto empresas vão à falência

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