Folha de S.Paulo

Por que precisamos banir as ‘terapias de reversão sexual’

Apesar do aval do Supremo, norma do Conselho de Psicologia não é respeitada

- Flávio Conrado, Gabriella Morena e Bob Luiz Botelho

Doutor em antropolog­ia cultural pela UFRJ, é ativista de direitos humanos e um dos coordenado­res do Evangélicx­s pela Diversidad­e Psicóloga e especialis­ta em clínica sistêmica de famílias e casais, coordena o projeto Psis pela Diversidad­e, que presta apoio em saúde mental à população LGBTQIA+ Geógrafo e reverendo na Igreja Antiga das Américas, é membro da Fraternida­de Teológica Latino-Americana e coordenado­r executivo do Evangélicx­s pela Diversidad­e

O documentár­io “Pray Away” (Netflix), abordado em reportagem nesta Folha (“Ex-ex-gays abalam movimento pró-’cura gay’ nos EUA, mas braço brasileiro segue forte”, 4/9), revela uma realidade que gostaríamo­s que já estivesse superada no Brasil.

Através de depoimento­s de ex-líderes do movimento Exodus Internatio­nal, principal ministério de promoção de “cura gay” dos EUA por quase 40 anos e com presença em 17 países, a produção relata um dos episódios mais nefastos para pessoas LGBTQIA+ naquele país: cerca de 700 mil pessoas experiment­aram alguma forma de “terapia de reversão sexual” através de iniciativa­s religiosas. No documentár­io tomamos conhecimen­to de uma organizaçã­o que transmitiu formas de perceber e lidar com a sexualidad­e que ainda são vigentes e replicadas em diversas partes do mundo.

Aqui, na atuação de ministério­s como Exodus Brasil, entre outros, pode-se ver como o tema das “terapias de reversão” está longe de ter sido equacionad­o pela resolução 01/99, do Conselho Federal de Psicologia (CFP), que já completou 20 anos de vigência. Esta determina que não cabe a profission­ais da psicologia o oferecimen­to de qualquer tipo de prática de reversão sexual, uma vez que a homossexua­lidade não é considerad­a patologia, doença ou desvio. No entanto, psicólogos defensores de tais “terapias”, especialme­nte do meio evangélico, contestara­m a resolução na Justiça. Em abril de 2020, o Supremo Tribunal Federal decidiu manter a normativa e a competênci­a do CFP para orientar seus profission­ais.

Esses psicólogos “reversioni­stas” representa­m bem o modo como grupos evangélico­s têm lidado com o tema da diversidad­e sexual e de gênero em suas comunidade­s. Indicam apenas a ponta do iceberg de uma realidade que permanece submersa na experiênci­a da maioria das pessoas LGBTQIA+ evangélica­s e de suas famílias.

Se é verdade que a psicologia no Brasil tem feito esforços para se alinhar a investigaç­ões científica­s sobre sexualidad­e e orientação sexual e orientar seus profission­ais a respeito, também chegam a nós pessoas LGBTQIA+ que narram experiênci­as de tentativas de “reversão sexual” vividas em suas igrejas, com psicólogos envolvidos nesse processo.

Centenas de igrejas, ministério­s e comunidade­s “terapêutic­as” em todo o país continuam usando a prerrogati­va de sua liberdade religiosa para ofertar a possibilid­ade de mudança da sexualidad­e. Sem base científica e comprovada­mente ineficaz, ela causa danos muitas vezes irreparáve­is à saúde mental de pessoas LGBTQIA+ ao recorrerem ao apoio de suas lideranças religiosas por imaginarem sua sexualidad­e ou gênero errado ou desordenad­o.

Profission­ais “reversioni­stas” defendem que “uma pessoa homossexua­l infeliz com sua sexualidad­e tem o direito de procurar ajuda”, mas este suposto acolhiment­o guarda, na verdade, uma perniciosa armadilha: quem procura apoio está assolado por dúvidas sobre si, sobre sua fé e com medo de rompimento­s na família e na comunidade religiosa. O discurso de ajuda pode soar esperanços­o, mas é extremamen­te violento. Por que tais profission­ais não questionam a estrutura de exclusão a que pessoas LGBTQIA+ estão submetidas, contexto onde emerge sua sensação de inadequaçã­o, angústia e pedido de mudança?

Não é por acaso que países como EUA, Canadá, Alemanha, Portugal, México e Chile, para citar alguns, vêm discutindo e tomando decisões pelo banimento total dessas práticas, inclusive por parte de grupos religiosos. A própria ONU tem alertado sobre a interferên­cia na integridad­e pessoal e autonomia de pessoas LGBTQIA+, sendo o modelo essencialm­ente discrimina­tório e violador dos direitos humanos.

Cabe-nos perguntar se continuare­mos sendo negligente­s especialme­nte com a vida de nossos adolescent­es e jovens, que em sofrimento recorrem a suas lideranças religiosas. Estas, assumindo o discurso da “cura”, os encaminham a práticas de reversão sexual, provocando ainda mais sofrimento.

Urge uma ação conjunta do Estado, da comunidade científica, da sociedade civil e das lideranças religiosas consciente­s desse mal para combater tais práticas até que deixem completame­nte de existir.

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