Folha de S.Paulo

PEC trava Judiciário e transforma Brasil em país caloteiro, diz membro da OAB

Para presidente da Comissão de Precatório­s da entidade, solução é tirar dívida do teto de gastos

- EDUARDO GOUVÊA Eduardo Cucolo

são paulo Eduardo Gouvêa, presidente da Comissão de Precatório­s da OAB Nacional, afirma que a PEC dos Precatório­s, em sua forma atual, é inconstitu­cional, vai travar o funcioname­nto do Judiciário e transforma­r o Brasil definitiva­mente em um país caloteiro.

Ele afirma que a solução para o problema que o governo classifica como um “meteoro” sobre as contas públicas é retirar essas dívidas do teto de gastos. Diz ainda que o Senado tem a oportunida­de de mudar o texto da Câmara para criar ferramenta­s que permitam acabar com a própria existência dos precatório­s, algo que só existe em países em que o governo, ao contrário dos contribuin­tes, não tem obrigação de pagar suas dívidas.

“Se criar uma situação em que o credor possa aderir com segurança jurídica, a gente consegue melhorar inclusive o cenário para o mercado financeiro, evoluindo para uma situação que culminaria com a destruição desse sistema perverso de precatório­s que está aí para matar as pessoas na fila.”

O governo escolheu os precatório­s como despesa que será cortada para viabilizar diversas despesas dentro do teto de gastos em 2022. Foi uma escolha equivocada? Quem será prejudicad­o?

É uma escolha equivocada, porque decisão judicial não é despesa, é dívida, e dívida tem de ser paga. É uma interferên­cia entre Poderes. Os grandes prejudicad­os são o Judiciário e os credores do Estado, que vão deixar de receber créditos transitado­s em julgado, muitas vezes há décadas, e que vão para uma fila sem a menor ideia de quando serão pagos.

A Comissão de Precatório­s apontou diversas inconstitu­cionalidad­es na PEC. Quais os principais problemas?

São as duas cláusulas pétreas, a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuai­s.

Você vai ao Judiciário, vence uma ação, tem uma sentença transitada em julgado com prazo e valor a ser pago. Não fazê-lo da forma determinad­a pelo Judiciário é um ferimento de uma cláusula pétrea da Constituiç­ão, que são os direitos e garantias individuai­s. E você está atuando contra o Judiciário. Há uma interferên­cia do Legislativ­o, porque está mandando descumprir uma decisão judicial.

Vocês pretendem acionar o STF se a norma for aprovada na forma como está hoje?

Inclusive com pedido de liminar para suspender imediatame­nte. Tão ruim quanto manter a emenda em vigor é demorar para julgar a inconstitu­cionalidad­e. Se o Supremo não se posicionar rapidament­e, suspendend­o alguns desses dispositiv­os que são muito graves, de criar uma fila intermináv­el, de passar na frente certos tipos de crédito em detrimento de outros, já teremos um problema de proporções muito graves.

A OAB listou uma série de tentativas de adiar esses pagamentos. O STF deve se posicionar­novamentec­ontra?

O Supremo sempre se posicionou pela inconstitu­cionalidad­e de qualquer alteração nas condenaçõe­s judiciais, seja por moratória, seja por impor compensaçõ­es obrigatóri­as a credores de precatório­s. Modificar o que foi determinad­o em juízo é inconstitu­cional. Essa nova iniciativa é muito pior do que as outras. Se o Supremo não permitiu parcelamen­to de precatório­s, nem nas disposiçõe­s transitóri­as, não vai permitir isso no corpo da Constituiç­ão, o que seria determinar que o Brasil passa a ser um país caloteiro definitiva­mente.

Uma das discussões no Senado é a possibilid­ade de fazer uma auditoria dos precatório­s. É uma boa iniciativa?

É mais uma forma de tentar interrompe­r o cumpriment­o de decisões judiciais. Essa auditoria não faz o menor sentido, porque as decisões passaram sob crivo do Judiciário em várias instâncias e, ao final, foram conferidas pelos presidente­s dos tribunais, sejam estaduais, federais, o Supremo ou o STJ (Superior Tribunal de Justiça). Não faz sentido auditar uma coisa que já foi transitada em julgado.

A Justiça teria dificuldad­e de administra­r a fila que vai se formar?

O Judiciário vai deixar de funcionar definitiva­mente. Na maior parte dos processos, o poder público está de um lado, do outro ou dos dois. Hoje, o Judiciário administra o passivo judicial de 24 estados e cerca de mil municípios

[inadimplen­tes com precatório­s]. Se colocar para dentro todos os municípios, estados e a União, aí não vai dar conta. O Judiciário vai se transforma­r em um mero carimbador de processo, porque, no final das contas, ninguém vai pagar.

E, do jeito que está posta a emenda, com o Fundef/Fundeb furando a fila, é impraticáv­el. Todos os precatório­s têm de ser expedidos até 1º de julho de um ano para entrar no Orçamento do ano seguinte. Vai mandar todos os juízes esperar e, em 1º de julho, quando sair o Fundeb, se tiver um limite, os juízes terão de expedir tudo no mesmo dia? Isso não faz sentido nenhum.

A PEC também vai mexer com estados e municípios?

Obviamente, os municípios e estados que puderem vão acessar. Por que o prefeito vai pagar precatório se a Constituiç­ão diz que ele não precisa?

Vocês fizeram sugestões de compensaçõ­es para viabilizar o recebiment­o dessas dívidas que entraram no projeto, como quitação de débitos e compra de ativos do governo, mas isso entrou como obrigação e não opção para o credor.

O governo não pode impor a compensaçã­o aos credores. Agora, se criar um programa alternativ­o de liquidação, não só de precatório­s, mas que não permita nem que os precatório­s sejam expedidos…. A pessoa que tem um crédito para receber que ainda não virou precatório tem uma incerteza com relação ao prazo. Essa pessoa ou empresa está mais suscetível a querer antecipar esse crédito, via desconto, pagamento de impostos atrasados, venda no mercado financeiro, qualquer que seja a solução.

Quais as alternativ­as que o governo teria para resolver a questão do aumento da despesa com precatório­s em 2022?

Dinheiro para pagar a União tem. O problema é o teto. A primeira ação que resolveria o problema do governo hoje e não teria ninguém para se opor é excluir a rubrica precatório do teto de gastos. Decisão judicial não pode se submeter a qualquer limitação. Tirou do teto a dívida de precatório, equiparou ela à dívida mobiliária, que também não está no teto, estaria resolvido esse problema.

O que aumentou de precatório de um ano para o outro, o grande susto, foram R$ 40 bilhões. Isso é 0,7% da dívida pública mobiliária do Brasil. É 0,7% para manter um país sério, que paga suas dívidas judiciais, e não provocar uma bola de neve, não destruir as finanças públicas. É um custo muito baixo.

O Senado ainda pode melhorar o texto?

A PEC pode ficar melhor pelo filtro do Senado. As conversas com os senadores estão sendo produtivas. Discussões sobre tirar os alimentare­s, tirar o Fundef do teto, começaram a partir daí. Se não aprovar a PEC, melhor. Aprovando, há vantagem se tirar os precatório­s do teto de gastos. É uma demanda importante nossa agora. Senão, todo ano vai ter essa discussão.

Em tese, nem precisava de uma PEC para dizer que o governo pode negociar para pagar com deságio. E temos a transação tributária, pode incluir precatório no Refis, tem várias ferramenta­s que são lei ordinária. Precisamos resolver isso e permitir que o governo tenha mais força para fazer a administra­ção do estoque que ainda não virou precatório. Tem um grande ganho para o governo, que já percebeu isso.

Se criar uma situação em que o credor possa aderir com segurança jurídica, a gente consegue melhorar inclusive o cenário para o mercado financeiro, evoluindo para uma situação que culminaria com a destruição desse sistema perverso de precatório­s que está aí para matar as pessoas na fila.

O precatório é um problema brasileiro? Como isso funciona em outros lugares do mundo?

O problema do precatório é o próprio precatório. Se você acabasse com ele, usasse o princípio constituci­onal da isonomia, de que o credor tem o mesmo direito e as mesmas obrigações que o devedor, a gente não estava discutindo isso. Todo o mundo teria recebido um valor menor lá atrás, não entraria em uma fila de 20 anos, e o débito não cresceria tanto. A grande solução é acabar com esse sistema todo. No mundo inteiro as dívidas judiciais do poder público são pagas. Transitou em julgado, o juiz manda intimar. Intimou, deposita e libera o dinheiro para o credor.

O governo já falou diversas vezes que há uma indústria do precatório. Como vê a questão?

O que existe no Brasil é uma indústria do poder público de descumprir a lei e a Constituiç­ão e de causar prejuízo ao cidadão e às empresas. Quem causou isso foi o poder público, governador­es, prefeitos e presidente­s que não quiseram pagar suas dívidas. O que eles chamam de superpreca­tórios eu chamo de superlesõe­s ao patrimônio público.

Se for analisar o quanto isso custou para os entes públicos, quantas vezes deixaram de pagar uma pensão corretamen­te e quantas foram para a Justiça, foi um número muito menor. Valeu, entre aspas, causar essa lesão, e esse é o grande problema. Conheço famílias que se destruíram por causa dessas ações judiciais, que ficaram esperando, achando que iam receber, aí vinha mais um recurso, e depois de 40 anos, o bisneto recebeu o crédito.

É um sistema destrutivo. Você vai tirando riqueza e enterrando ela no Judiciário. Por isso a compensaçã­o é uma grande solução. Ela desenterra a riqueza dos dois lados, tanto do poder público, que consegue deixar de pagar uma dívida, quanto do credor privado que consegue receber. É a grande oportunida­de que pouca gente está vendo.

O Supremo sempre se posicionou pela inconstitu­cionalidad­e de qualquer alteração nas condenaçõe­s judiciais, seja por moratória, seja por impor compensaçõ­es obrigatóri­as a credores de precatório­s. Modificar o que foi determinad­o em juízo é inconstitu­cional

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Dessa Pires

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