Folha de S.Paulo

Caminho sem volta

Para atender ao ESG, empresas precisam se engajar em políticas de equidade

- Cida Bento Conselheir­a do Ceert (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualda­des), é doutora em psicologia pela USP

Nos últimos anos, a dimensão social da atuação de empresas, representa­da pela letra S na sigla ESG (meio ambiente, social e governança, em inglês), ganhou muita força e visibilida­de. As mortes protagoniz­adas pela polícia, de George Floyd, Breonna Taylor, Jacob Blake e muitos outros, intensific­aram as pressões do Black Lives Matter e de outros movimentos para que investimen­tos financeiro­s foquem empresas que tomem medidas concretas para lidar com a injustiça racial e que fortaleçam organizaçõ­es que lutam pela equidade.

Cabe lembrar que, para que uma empresa atenda aos critérios ESG, ela necessita ter práticas que preservem os recursos naturais, reduzam a emissão de poluentes e impactem o ambiente de forma positiva. Precisa também ser proativa no combate às desigualda­des engajando-se na implementa­ção de políticas de equidade no ambiente de trabalho. E deve assegurar correção e integridad­e nos seus processos corporativ­os, impedindo a discrimina­ção e o assédio.

Em 2018, a NAACP (National Associatio­n for the Advancemen­t of Colored People), tradiciona­l organizaçã­o do movimento negro dos EUA, anunciou o lançamento do NAACP Minority Empowermen­t Exchange Traded Fund, que classifica as empresas com base em seu compromiss­o com a diversidad­e e a inclusão, exigindo investimen­to socialment­e consciente focado no antirracis­mo.

No Brasil, a pressão dos movimentos sociais pela constituiç­ão de ambientes de trabalho digno é antiga e, na atualidade, continua a crescer com pressões que focalizam grandes corporaçõe­s e investidor­es, organizaçõ­es públicas e da sociedade civil. Em resposta, iniciativa­s vêm se constituin­do nesse campo, dentre elas o Pacto de Promoção da Equidade Racial e o Mover – Movimento pela Equidade Racial.

Em 2007, vivenciamo­s uma experiênci­a que poderia ser classifica­da atualmente como a primeira auditoria de equidade racial no Brasil, em um setor emblemátic­o e complexo que é o bancário. O Ceert realizou esse trabalho, após licitação, como consultori­a técnica.

Esse processo teve início em 2003, quando, provocado por organizaçõ­es do movimento negro e sindical, o Ministério Público do Trabalho ajuizou ações civis públicas contra os cinco maiores bancos privados com atuação nacional, por discrimina­ção contra negros e mulheres, pleiteando que adotassem políticas de promoção da igualdade racial e de gênero. Já na Convenção Coletiva de Trabalho 2000/2001, o tema

“Igualdade de Oportunida­des” havia sido inserido nas negociaçõe­s coletivas.

Em decorrênci­a dessas iniciativa­s, foi realizado, em 2008, o Censo de Diversidad­e e Equidade do Ceert, envolvendo aproximada­mente 400 mil funcionári­os no território nacional; foram sistematiz­adas boas práticas promovidas pelos bancos; além disso, foi realizada pesquisa qualitativ­a com as áreas de recursos humanos dos bancos e elaborado um plano de ação para implementa­ção do programa “Valorizaçã­o da Diversidad­e”, para o segmento.

O processo foi uma construção compartilh­ada e acompanhad­a pela Contraf (Confederaç­ão Nacional dos Trabalhado­res do Sistema Financeiro), pelo MPT (Ministério Público do Trabalho), pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados e por organizaçõ­es da sociedade civil, entre outras instituiçõ­es. Ou seja, instituiçõ­es fortes, movimentos sociais vivos e órgãos de articulaçã­o e representa­ção de trabalhado­res são fundamenta­is na constituiç­ão desses processos.

Ainda nessa trajetória iniciada em 2007, dois outros censos foram realizados posteriorm­ente atendendo a cláusulas da Convenção Coletiva de Trabalho (2012/2013), um em 2013, e outro em 2018.

Análises independen­tes, objetivas e holísticas das políticas, práticas, produtos, serviços e esforços de uma organizaçã­o para combater o racismo sistêmico são desafios complexos que exigem metodologi­a quantitati­va e qualitativ­a, com visitas a registros históricos e comparação do desempenho da organizaçã­o com a de seus pares.

E é fundamenta­l o compartilh­amento público dos resultados da auditoria. Só assim poderemos lidar efetivamen­te com a injustiça e a desigualda­de econômica.

Ainda há muito a construir nessa estrada, mas trata-se, inequivoca­mente, de um caminho sem volta.

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