Folha de S.Paulo

Estamos todos nos fanatizand­o?

Sabendo que não há santos em campo fica mais fácil fazer e ouvir críticas

- Sérgio Rodrigues Escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira”

O que separa alguém de convicções firmes de um fanático? A resposta não é fácil e pode mesmo ser impossível, ou antes subjetiva, dependente de crenças tão enraizadas em cada um de nós que mergulham no visceral, no irracional.

Em resumo, fanatismo é a convicção firme dos que discordam de mim, e portanto estão errados; convicção firme é o fanatismo de quem pensa como eu, logo está certo. As palavras não são inocentes.

Mas será só isso? Estaremos condenados a esse estranho oxímoro, o relativism­o absoluto, e à morte do diálogo? Ou haverá um modo menos cínico de lidar com visões de mundo divergente­s?

Em outras palavras, será possível recuperar um solo comum em que adversário­s negociem, firmem pactos em torno de certos —talvez poucos, mas cruciais— objetivos compartilh­ados?

A tarefa, que está na essência do jogo político, sempre foi dureza, mas parece se tornar mais espinhosa em nossa época de bolhas de opinião pública entrinchei­radas em redes sociais —e atirando sem parar. Será que estamos todos nos fanatizand­o?

A palavra fanatismo tem duas acepções no Houaiss. A primeira é “zelo religioso obsessivo que pode levar a extremos de intolerânc­ia”. A segunda, derivada daquela por extensão, “facciosism­o partidário; adesão cega a um sistema ou doutrina; dedicação excessiva a alguém ou algo; paixão”.

Se este último sentido é o que logo vem à mente em tempos de polarizaçã­o política, o primeiro, original, nos dá a chave da palavra. Já houve uma época em que todo fanático era religioso.

O termo chegou ao português (em fins do século 18) como versão importada do adjetivo latino derivado de “fanum”, lugar sagrado, campo santo. O “fanaticus” tinha conotações positivas a princípio —era o inspirado pela chama divina—, mas não demorou a ganhar acepções como furioso, louco e delirante.

O problema era a chama divina, claro, com sua carga de verdade revelada por uma suposta inteligênc­ia superior. Quem acredita ser defensor de algo tão sublime —e não contingent­e, imperfeito, como são as coisas humanas— não se detém diante de nada. O “fanaticus” é fanático desde o berço.

Se hoje está associada de vez a intolerânc­ia e irracional­idade, a palavra tem um filhote moderno que conserva alguma inocência: fã, admirador, é uma redução do inglês “fanatic”, que tem a mesma origem. É o fanático benigno. E se conseguíss­emos ser mais fãs e menos fanáticos?

O estraga-prazeres que pede calma às facções engalfinha­das apanha de todos, mas o investimen­to no diálogo parece urgente neste momento em que o Brasil embarca numa campanha eleitoral que promete virar uma pororoca de fanatismos visível do espaço a olho nu.

Não se trata da ideia bocó de conversar com todo mundo, de tudo perdoar. Há posições inegociáve­is e adversário­s irredutíve­is —e deve haver. Mas não há santos em campo, e saber fazer e ouvir críticas sem que o passo seguinte seja uma condenação à morte pode ser um bom começo.

Mesmo porque, com os fanatismos em fogo alto, há o risco de que o vencedor da eleição não consiga governar. Será possível baixar a bola? E, caso não seja, o que vai ser de nós?

Minha firme convicção, que alguns chamarão de fanatismo (e tudo bem), é que o governo Bolsonaro conduziu o Brasil a um estado avançado de decomposiç­ão —institucio­nal, moral, social, ambiental. O país está cheio de fraturas expostas, morrendo diante de nós. Ou o salvamos daqui a um ano ou esquece.

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