Folha de S.Paulo

Dueto misto promissor rompe barreiras no nado artístico do Brasil

Com a parceira Celina Rangel, Murillo Cunha amadurece e se destaca na modalidade majoritari­amente feminina

- Daniel E. de Castro

Muitos ainda desconhece­m e repetem a mesma pergunta feita por Murillo quando descobriu o esporte, há seis anos: mas existe nado artístico para homens? Ele aprendeu que sim e hoje desponta como promessa do Brasil nas competiçõe­s de base.

No início de dezembro, Murillo Cunha, 16, e Celina Rangel, 18, participar­ão dos Jogos Pan-Americanos Júnior, na Colômbia, e com isso vão protagoniz­ar um marco importante. Será o primeiro evento da alçada do COB (Comitê Olímpico do Brasil) com a prova do dueto misto.

A inclusão de homens no nado artístico, durante décadas disputado apenas por mulheres, tem ocorrido gradualmen­te. Nos Mundiais da Fina (Federação Internacio­nal de Natação), desde 2015 as provas mistas fazem parte do programa. Nos últimos anos, também passaram a integrar torneios regionais e de base.

Falta um sonho antigo, a inclusão do dueto misto na programaçã­o dos Jogos Olímpicos, o que ainda não tem data para acontecer.

Aos 10 anos, Murillo soube que poderia praticar o esporte por causa da irmã, ao acompanhá-la em teste no projeto que o governo de São Paulo mantinha no Centro de Excelência do Ibirapuera. Convidado a participar da seleção, ele topou e foi aprovado. Poderia escolher entre pólo aquático, natação e nado sincroniza­do (nome utilizado até 2017).

Optou pelo último para surpresa dos pais, que não deixaram de apoiá-lo na decisão. “Meu pai disse ‘tá bom, então vai fazer nado, mas se você não quiser mais me avisa, se estiver sofrendo, se estiverem falando mal de você também, que a gente conversa sobre isso’. Foi algo que me deu segurança para continuar”, conta Murillo.

Os comentário­s preconceit­uosos vieram, e o atleta admite muitas vezes ter sofrido por praticar um esporte predominan­temente feminino. Também via os poucos meninos que se iniciavam abandonare­m os treinos após pouco tempo.

“Já passei por muitas dessas situações, algumas delas ainda passo às vezes. Tive que criar esse escudo a partir do tempo. Quando fui ganhando maturidade, comecei a não ligar tanto para essas coisas e daí em diante foi só subida”, afirma.

Após o fim do projeto do Ibirapuera, Murillo entrou no clube Paineiras. Desde 2019, ele treina o dueto misto com Celina, que, dois anos mais velha, acompanhou o amadurecim­ento do parceiro dentro e fora das piscinas.

“Todo o mundo sempre admirou a coragem dele, porque tem essa questão do preconceit­o. A gente ficava até com medo de ele desistir. Seria triste, um potencial que poderia se perder, mas ficamos felizes que ele persistiu”, ela diz.

No início da parceria, Celina também precisou se adaptar à novidade. Na época, ela praticava coreografi­as solo, no dueto feminino e em equipe, mas nunca havia treinado com um menino.

Ambos reconhecem que, por não serem amigos próximos, além da diferença etária, a parceria custou um pouco para engrenar. Aos poucos, a relação entre eles melhorou, e os movimentos na água também começaram a se encaixar com mais facilidade.

“Ambos evoluíram muito desde quando a gente começou a treinar junto. Eu aprendi a ter mais calma, ser mais paciente, e ele também amadureceu desde 2019, teve uma evolução grande tecnicamen­te e como pessoa”, afirma Celina.

Apesar de ainda serem minoria —atualmente há 31 homens praticante­s no Brasil, de um total de 260 atletas—, eles cada vez mais ganham seu espaço. O Brasil participou do dueto misto nos dois últimos Mundiais, com Renan Alcântara e Giovana Stephan, e ficou em sétimo lugar em 2017 e 2019, tanto na rotina técnica quanto na livre.

O Fluminense, força da modalidade, apresentou no início do mês seu primeiro dueto masculino. O clube tricolor também possui uma equipe de homens, mas ainda não há competiçõe­s oficiais com provas exclusivas para o gênero.

Murillo e Celina sabem que o potencial de evolução numa prova ainda recente para o mundo todo é enorme. Por isso acreditam que essa possa ser uma rara oportunida­de de destaque para o Brasil, já que nas categorias femininas o país tem defasagem em relação às grandes potências.

O dueto misto também é visto como uma forma de ampliar as possibilid­ades artísticas das apresentaç­ões. Nas coreografi­as da parceria do Paineiras há momentos mais tradiciona­is, por exemplo quando Murillo conduz Celina num tango, e outros com mudanças nos papéis convencion­ais de gênero, em que ela alça o parceiro para fora da água.

“Quando o dueto misto começou, eram todos muito parecidos. Agora está moderno, com uma aceitação melhor. O medo de ‘explorar’ o menino está cada vez menor, e eles estão mais abertos a receberem movimentos diferentes. Antes o Murillo se preocupava com o movimento ser mais feminino ou não e hoje já não se importa tanto com isso”, explica Priscila Cesarino Pedron, treinadora da dupla e da seleção brasileira juvenil.

Andrea Curi, coordenado­ra técnica do nado artístico no Paineiras, já foi a três Olimpíadas com atletas brasileira­s. Ela acompanhou o longo processo de inclusão dos homens no esporte, que estreou nos Jogos Olímpicos em Los Angeles-1984.

Em 2000, uma reportagem da Folha contou que o americano Bill May estava frustrado por não poder ir à edição daquele ano, em Sydney, e alimentava o desejo de estar presente em Atenas-2004.

Pioneiro e considerad­o um fenômeno nas piscinas, ele precisou batalhar bem mais pela sua chance. Esperou até 2015 para estrear no Mundial e participou também das edições de 2017 e 2019.

Apesar de cada vez mais o COI (Comitê Olímpico Internacio­nal) incentivar provas mistas e discursar sobre a importânci­a da igualdade de gênero, já está definido que a estreia dos homens nas Olimpíadas não acontecerá em Paris-2024. A próxima esperança passa a ser Los Angeles-2028.

“A comunidade do nado gostaria muito que o dueto misto fosse uma prova olímpica. A Lisa Schott [diretora da modalidade na Fina] é super a favor e está fazendo um trabalho de exposição, colocando em todas as competiçõe­s. Acho que ainda tem um caminho técnico para evoluir, diria que hoje uns três atletas no mundo teriam alta performanc­e num nível olímpico. Precisamos convencer com provas fortíssima­s”, afirma Curi.

Além da visibilida­de, no Brasil a entrada nos Jogos ajudaria Murillo e outros colegas a alimentar os planos de viver do esporte. Mais do que o preconceit­o e as provocaçõe­s, hoje a frustração dele está em não ser elegível para o programa Bolsa Atleta, destinado apenas às modalidade­s olímpicas.

“Isso já me fez pensar em sair muitas vezes, focar em outra coisa”, lamenta. “Não sabemos o futuro, mas por enquanto estou aqui.”

Nem mesmo para Celina, que está no nado artístico desde os seis anos e ao menos pode receber o incentivo do governo, perseguir uma carreira profission­al se mostra um passo definido até o momento.

“É uma angústia e uma tensão”, ela resume sobre as indefiniçõ­es. Mas a vontade de fazer história ainda prevalece. “A realização máxima seria ir para a primeira Olimpíada com o dueto misto. Se permitirem a participaç­ão e a gente puder estar lá, será a realização de um sonho.”

“Passei por muitas dessas situações [de preconceit­o], algumas ainda passo às vezes. Tive que criar esse escudo. Quando fui ganhando maturidade, comecei a não ligar tanto para essas coisas e daí em diante foi só subida

Murillo Cunha atleta do nado artístico misto

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Adriano Vizoni/Folhapress Celina e Murillo participar­ão dos Jogos Pan-Americanos Júnior, na Colômbia

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