Folha de S.Paulo

Corpo e memória de Maradona hipnotizam um ano após morte

Argentinos mantêm obsessão por ídolo, e família ainda briga com advogado

- Alex Sabino

“Um grupo de barras bravas planejou invadir [a funerária] e extrair-lhe o coração [de Maradona]. Foi detectado que isso ia acontecer, então se extraiu o coração também para estudá-lo

Nelson Castro médico e jornalista argentino, em programa de TV

Menos de um mês antes de morrer, Diego Armando Maradona disse a seu advogado, Matías Morla, que desejava ser embalsamad­o. O corpo do ídolo argentino, segundo a versão de seu representa­nte, deveria ser exposto para visitação pública.

O desejo, ignorado pela família, foi registrado em cartório.

Um ano após sua morte, Maradona continua com a capacidade de mobilizar o país. Por insuficiên­cia cardíaca, ele morreu em 25 de novembro de 2020.

“Houve um grupo de barras bravas do Gimnasia que planejou invadir [a funerária] e extrair-lhe o coração. Isso não chegou a acontecer porque foi um ato de ousadia enorme. Foi detectado que isso ia acontecer, então se extraiu o coração também para estudá-lo porque seu coração foi muito importante para determinar a causa do faleciment­o. Evidenteme­nte, a informação é que ele está enterrado sem coração”, disse o médico e jornalista Nelson Castro em programa de TV.

Em outra proporção, é como se a Argentina revivesse a obsessão pelo cadáver de Eva Perón. Em sua biografia sobre a primeira-dama, Alicia Dujovne Ortiz narra a saga do corpo de Evita, sequestrad­o, violentado e enterrado apenas 20 anos após sua morte.

O “roubo” do coração de Maradona não foi o único sobressalt­o. Havia a preocupaçã­o de que torcedores organizado­s do mesmo Gimnasia e do Boca Juniors pudessem afanar o corpo do ídolo antes do velório para levá-lo aos campos das duas equipes.

No cortejo até a Casa Rosada, sede do governo argentino em Buenos Aires, onde foi velado, o caixão passou pelo estádio Diego Armando Maradona, do Argentinos Juniors, sua primeira equipe profission­al.

O ídolo está enterrado em Bella Vista, em um cemitério particular a cerca de 45 km da capital. É onde também estão os restos mortais de seus pais, Diego e Tota.

A imagem do camisa 10 ainda está presente em todas as rodadas do campeonato nacional. A maioria dos 30 times da primeira divisão tem murais com o rosto do craque em seus estádios. Seus antigos colegas de seleção aparecem quase toda semana na imprensa e o citam.

Ocruzament­odasruasSe­gurola e Habana, em Villa Devoto, bairro de classe alta da capital, foi rebatizado neste mês como esquina Diego Maradona. Ele viveu no local e ainda era dono de um apartament­o no endereço quando morreu.

“Ele era um menino maravilhos­o, um doce de pessoa. Mas eu falo apenas sobre Diego. Não sobre Maradona. Eu sempre digo uma coisa: com

Diego, compartilh­aria toda minha vida. Mas Maradona era impossível de ser suportado por tudo o que gerava ao redor dele”, opina Fernando Signorini, preparador físico particular do atacante durante anos e depois integrante da comissão técnica da Argentina nas Copas de 1986, 1990 e 2010.

É uma variação de outra definição que ele mesmo cunhou sobre o camisa 10 e que se tornou uma das mais famosas: a de que com Diego iria até o fim do mundo, mas com Maradona não daria um passo.

Signorini lançou no mês passado o livro “Diego, Desde Adentro”, em parceria com o jornalista Luciano Wernicke. É uma das várias obras sobre o atacante após sua morte.

Há um mês, de 29 de outubro a 1º de novembro, todos os jogos de diferentes divisões do futebol local realizaram homenagens a Maradona, que completari­a 61 anos em 23 de outubro. Uma delas foi feita pelo Boca Juniors, que entregou uma placa para sua filha Dalma.

Ela é a figura mais visível da disputa judicial com Matías Morla. O advogado registrou para a Sattvica S.A, uma empresa registrada em seu nome, 147 marcas relacionad­as a Maradona. As filhas Dalma e Giannina e a ex-esposa de Diego, Claudia Villafañe, alegam que o pedido foi irregular. Elas venceram em primeira instância, mas em agosto deste ano a Justiça devolveu os direitos a Morla. O caso está em andamento.

A disputa se tornou uma briga interna na família Maradona. Morla arregiment­ou para o seu lado as irmãs de Diego.

Dalma acusa o advogado de ter feito acordo com o médico Leopoldo Luque para que fosse dado laudo determinan­do internação domiciliar de Maradona quando as filhas queriam sua internação em uma clínica para tratar o alcoolismo.

Luque, médico pessoal do jogador, é um dos indiciados por homicídio culposo, pelo fato de as regras da internação domiciliar não terem sido respeitada­s naquele novembro de 2020. Maradona foi levado para uma mansão nas cercanias de Buenos Aires em que, entre outras coisas, não tinha acompanham­ento médico 24 horas por dia.

Parte dos bens deixados pelo ídolo ainda estão em dois contêinere­s, guardados em armazém da capital à espera de uma determinaç­ão judicial. O mesmo para os imóveis que estavam em seu nome e aplicações financeira­s. Não está claro o paradeiro do anel avaliado em 300 mil euros (R$ 1,9 milhão pela cotação atual) que ele usava em jogos como técnico do Gimnasia y Esgrima La Plata.

A joia foi presente que ganhou nos tempos em que foi presidente (mas sem exercer o cargo) do Dínamo de Brest, de Belarus, de 2018 a 2019. Durante a rápida passagem pelo país, ele também ganhou um tanque anfíbio. Deixou-o para trás ao voltar para a Argentina. Fez o mesmo com os dois Rolls-Royce que usava no Fujairah, dos Emirados Árabes. Ele descobriu que importá-los para Buenos Aires seria mais caro do que o valor dos veículos.

Não que sua história tenha permanecid­o imaculada nos 12 meses que se passaram desde sua morte. A cubana Mavys Álvarez Rego afirma ter tido um relacionam­ento com Maradona e que teria sido estuprada por ele.

Na época, ela tinha 16 anos e morava em Havana, onde o argentino fazia tratamento contra as drogas no início dos anos 2000. Ou deveria fazê-lo, já que Mavys afirma que o exjogador lhe oferecia cocaína.

“Uma vez, minha mãe bateu na porta do quarto, mas Diego não a deixou entrar. Depois, ele colocou a mão na minha boca e me estuprou”, acusou.

Maradona morreu também enquanto enfrentava seis processos de reconhecim­ento de paternidad­e. Quatro deles de adolescent­es cubanos.

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