Vencedor de Sundance retrata todo o horror de um ataque psicótico
‘Surto’, do britânico Aneil Karia, investe em uma exatidão que pode interessar a especialistas, mas não ao público
Surto ★★★★★
Reino Unido, 2020. Dir.: Aneil Karia. Com: Ben Whishaw, Ellie Haddington, Hammed Animashaun. Disponível para compra e aluguel em diversos serviços
“Surto” se propõe como isso mesmo —descrever um surto psicótico. O assunto interessará a especialistas e dificilmente atingirá outras plateias. Tudo ali gira em torno de Joseph, um segurança de aeroporto que passa os dias sofrendo com a hostilidade das pessoas que precisa revistar.
Se suas relações sociais parecem mínimas, em família as coisasnãosãomuitomelhores, com o pai autoritário e a mãe submissa. Em seu aniversário, ao experimentar o bolo feito pela mãe, começa o surto.
O que é um surto e coisas assim o filme não vê como de sua alçada. Mas deixa entender que essa impaciência, o desejo de pular fora do próprio corpo denunciam a vida em uma sociedade absolutamente controlada.
O controle brutal dos aeroportos é apenas o sinal visível desse estado de coisas, que se manifesta a todo momento pelo apelo à “segurança” (essa instituição que se encarrega de manter a ordem antes da polícia), pelas sirenes nas ruas, pelos rituais de senha dos cartões de crédito etc.
Nesse et cetera se incluíam as mil exigências que devemos cumprir e dados que devemos fornecer para fazer qualquer coisa na internet, de pedir comida a se cadastrar no Poupatempo.
Aneil Karia, o diretor e corroteirista do filme, não desenvolve nenhuma ideia em relação à doença em si (se é que se trata de doença, no caso), optando por mostrar tudo. Seu procedimento é acompanhar a personagem com uma trepidante câmera na mão, observar de costas e por vezes de frente, se fixar em alguns de seus gestos.
Joseph passa a resolver seu problema financeiro com discretos assaltos a bancos, rouba também a moto de um desafeto, troca socos na rua com um homem após um acidente.
Tudo isso Joseph faz sem ser importunado. Assim, depois que rouba um banco, sai correndo e permanece incógnito. Como se na multidão desaparecessem crachás e identidades, dando lugar a um anonimato que se confunde com a sensação de absoluta liberdade.
Nesse sentido, fica a impressão de que o surto corresponde a um ressurgimento do sujeito das brumas de uma sociedade muito mais repressiva do que costumamos imaginar.
O ponto de vista não deixa de ser interessante. A rigor, bem mais interessante do que esse filme britânico, em que o apocalipse pessoal da personagem pode até corresponder a uma descrição exata do que seja um surto dessa natureza, mas certamente implica uma repetição do mesmo sentido, por diferentes gestos, ao longo de quase toda sua duração. Não é fácil de engolir.