‘Encanto’ lembra Shakira e realismo fantástico de García Márquez
são paulo
Entre as montanhas verdes da região amazônica, uma casa de cores vibrantes se ergue de forma fantasiosa. Um povoado humilde orbita aquela construção imponente, adornada ainda por flores e animais como tucanos, capivaras e onças. Do lado de dentro, uma grande família troca beijos e abraços de forma constante e apesar das brigas. Poderia ser o Brasil, mas “Encanto” se passa na Colômbia.
Nem por isso a 60ª animação do Walt Disney Animation Studios deixa de ter um valor especial para os brasileiros —e, na verdade, para boa parte dos latino-americanos. Apesar da ambientação no país vizinho, a trama deve encontrar maneiras de se conectar com todo esse canto da
América ao rejeitar o arquétipo da donzela europeia que já foi onipresente no estúdio.
Em “Encanto”, os tons pastéis de vestidos como os de Cinderela e Aurora e os cavalos lustrosos dos príncipes encantados dão lugar a figurinos de cores que nem sempre combinam e a burros que são o meio de locomoção dos personagens. Já os casais têm vários filhos, que se reúnem numa longa mesa que faria inveja ao quarteto real de “Frozen”.
Estreando agora, “Encanto” precisa de uma longa canção de abertura para dar conta de apresentar todos os membros da família Madrigal. O musical animado mostra como Abuela Alma, após perder o marido, com três filhos para criar, recebe um milagre —em forma de uma vela mágica, que ergue uma bela casa e concede poderes a seus descendentes. Com exceção de Mirabel.
Por isso, ela é uma espécie de patinho feio da família — até que a mágica dos Madrigal começa a rarear e ela parte numa jornada para tentar salvar os pais, irmãos, tios, primos e a avó, que tantas vezes olharam para ela com desdém.
“Eu via muitas telenovelas com a minha avó, então eu tenho certeza que elas encontraram um caminho para aparecer no filme. Elas influenciaram a maneira como eu conto histórias, sempre dessa forma muito dramática”, diz Charise Castro Smith, corroteirista e codiretora do filme, que tem ascendência cubana.
Nessa trama de dezenas de personagens, picuinhas bobas e um amor pela família maior do que qualquer coisa, é fácil reconhecer um tipo de afeição muito característica dos latinos. Além de Castro Smith, vários funcionários com raízes na América Latina ajudaram a levar o filme às telas, como o chefe de animação Renato dos Anjos, que é brasileiro.
“Eu queria que o filme fosse bem específico culturalmente, que a gesticulação, a articulação dos personagens fosse bem parecida com a realidade, que houvesse proximidade nas interações”, diz o animador. “E isso em computação gráfica é um tanto difícil.”
Outros temas comuns à realidade latino-americana estão muito presentes. A magia da família, por exemplo, é resultado de uma tragédia causada por uma versão do que conhecemos como coronelismo e é explicada como sendo um “milagre”, escancarando o misticismo pulsante deste lado do continente.
Isso tudo é entregue numa embalagem igualmente regional, por meio de músicas criadas por Lin-Manuel Miranda. Colaborador frequente da Disney, o filho de portoriquenhos buscou inspiração em ritmos como bambuco, mapalé, cúmbia, joropo e no “rock do início da carreira de Shakira” para a trilha sonora.
Mas como os filhos de cubanos, brasileiros e portoriquenhos concordaram em situar “Encanto” na Colômbia, e não em outro país latino ou num reino imaginário? Jared Bush e Byron Howard, diretores da animação, contam que a rota até o país foi traçada aos poucos.
A ideia de fazer um filme com sangue latino já existia, e vários elementos foram incorporados à trama conforme a Disney buscava uma coordenada geográfica para a história. Por sugestão de amigos, a dupla fez uma visita à Colômbia e, lá, se apaixonou pela cultura e pelo visual do país.
“O fato é que a Colômbia é o país onde o realismo fantástico nasceu, com Gabriel García Márquez. A maneira como essa literatura conversa com a emoção, e como a mágica nela vem das coisas do dia a dia, fez todo o sentido para o filme que queríamos”, diz Howard.
Com músicas dançantes e visual alegre, o filme promete encantar de crianças a seus familiares, de noveleiros a fãs de teatro musical. Levando, junto, um gostinho de América Latina para o mundo todo.
Encanto
EUA, 2021. Dir.: Jared Bush, Byron Howard e Charise Castro Smith. Livre. Nos cinemas