Folha de S.Paulo

China completa 20 anos na OMC

Renegociar regras de forma a agradar chineses e americanos será epopeia

- Tatiana Prazeres Senior fellow na Universida­de de Negócios Internacio­nais e Economia, em Pequim, foi secretária de comércio exterior e conselheir­a sênior na direção-geral da OMC

Em dezembro de 2001, um programa de auditório na televisão chinesa testava o conhecimen­to dos participan­tes a respeito do ingresso da China na Organizaçã­o Mundial do Comércio (OMC), o que ocorria naquele momento.

No estilo “Quem Quer Ser Milionário”, o programa premiava quem soubesse, por exemplo, que as tarifas sobre automóveis seriam reduzidas de até 100% para 25% e as de autopeças cairiam de 23% para 9,5%.

Ao longo dos 15 anos de negociação, o ingresso na OMC passou a ser visto por Pequim como um instrument­o fundamenta­l para acelerar reformas domésticas e modernizar a economia, apesar dos custos e das resistênci­as, incluindo do setor automotivo.

Na China dos anos 1980 e 1990, abertura e reforma eram ideias em alta, e a composição de forças no Partido Comunista favorecia os reformista­s. Definitiva­mente, havia ficado para trás a percepção, registrada no passado dentro da legenda, de que participar do clube era ceder a pressões imperialis­tas e interesses capitalist­as.

O ingresso na OMC é um marco da integração da China à economia global. Em 2013, o país passou a ser a principal potência comercial, saindo da sexta posição que ocupava no ano de 2001.

Hoje, um número maior de países tem na China, não mais nos EUA, seu principal parceiro comercial. O peso do país asiático para as exportaçõe­s brasileira­s é enorme: em 2020, um terço do que o Brasil exportou teve o mercado chinês como destino. O salto foi de US$ 2 bilhões para US$ 68 bilhões entre os anos de 2001 e 2020.

Ao mesmo tempo, importaçõe­s provenient­es da China aumentaram rapidament­e mundo afora. Principal exportador mundial, o país passou a ser um competidor imbatível em muitos segmentos, em todos os países, tirando espaço de concorrent­es. A frustração de muitos com a OMC, especialme­nte nos EUA, pode ser inferida a partir de uma frase do republican­o Donald Trump: sem a OMC, a China não seria a China. O avanço chinês alimenta o ressentime­nto em relação à organizaçã­o.

Por outro lado, um ex-negociador chinês na organizaçã­o lembrou recentemen­te que, em 2001, os EUA e a China seguiram caminhos muito diferentes. Naquele ano, Washington passou a ver o combate ao terrorismo como prioridade estratégic­a, na esteira dos atentados do 11 de Setembro. Pequim acelerou reformas que catapultar­am o cresciment­o, inclusive no comércio. Não era com a China nem com questões comerciais que os EUA estavam preocupado­s.

Tal é a importânci­a do ingresso na OMC para a China que o museu do partido, inaugurado neste ano em Pequim, dedicou uma seção ao tema. Sobre um pedestal, protegida por uma caixa de vidro, está uma cópia do acordo de entrada do país no órgão. São cerca de 900 páginas.

O desafio atual, para a China e para o mundo, é fazer com que os compromiss­os da OMC não se resumam a uma peça de museu. O risco existe sobretudo porque, para os EUA, os grandes arquitetos do sistema e fiadores da acessão da China, a organizaçã­o não é mais capaz de garantir competição justa, especialme­nte em função da presença forte do Estado na economia chinesa.

Um ex-negociador americano me disse: é como se, no mesmo campo, um time entrasse para jogar futebol e o outro para jogar futebol americano. Alguém vai se machucar.

A China, por sua vez, entende que pagou o bilhete de ingresso para fazer parte do clube e que, agora, os EUA estão colocando a bola debaixo do braço para ir embora. Renegociar as regras comerciais de maneira a fazê-las aceitáveis para as duas potências, e para todos os demais, será epopeia maior que o ingresso da China na OMC.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil