Folha de S.Paulo

Pior da epidemia de Aids pode estar por vir com jovens se contaminan­do

Para ex-diretor de programa nacional, aumento de casos de HIV entre gerações mais novas resultará em cenário futuro dramático

- Alexandre Grangeiro Cláudia Collucci

são paulo O pior da epidemia de Aids ainda pode estar por vir caso o número de jovens infectados pelo HIV continue a aumentar, alerta o sociólogo Alexandre Grangeiro, pesquisado­r do Departamen­to de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP (Universida­de de São Paulo).

Ex-diretor do programa nacional de HIV/Aids do Ministério da Saúde (2003-2004) e hoje coordenado­r de estudos com PrEP (profilaxia pré-exposição) para adolescent­es e adultos, ele diz que a nova geração de soropositi­vos já contribui mais para a epidemia do que as primeiras gerações, hoje com 60, 70 anos.

“Se essa tendência se mantiver, ou seja, se cada nova geração contribuir com um maior número de casos, teremos uma situação muito dramática pela frente, revertendo todos os ganhos que se teve até aqui”, afirma Grangeiro, 56.

Dados do mais recente boletim epidemioló­gico de HIV/ Aids do Ministério da Saúde, divulgado na quarta (1º), Dia Mundial de Luta contra a Aids, revela que os jovens são os com maior incidência da doença. Dos casos registrado­s entre 2007 e junho de 2021, 53% foram entre jovens de 20 a 34 anos.

Para Grangeiro, houve uma mudança de comportame­nto geracional que as políticas não conseguem acompanhar. “Há um descompass­o grande entre o que está tendo de resposta e a mudança de comportame­nto vivenciado pela população.”

O sr. diz que o pior da epidemia de HIV/Aids ainda pode

estar por vir. Por quê? Em doenças muitos longas como o HIV/Aids, é muito importante olharmos para as gerações porque há muitas mudanças ao longo do tempo. Essas gerações dos 60 e 70 anos foram fortemente atingidas pelo HIV e foram as que mais contribuír­am para o número de casos ao longo dos anos.

As gerações que nasceram com a doença já instituída e com seus impactos mais claros, com conhecimen­to mais difundido, conseguira­m refrear a epidemia e isso levou à estabiliza­ção do cresciment­o da doença, redução do número de internaçõe­s e óbitos.

Mas as gerações nascidas a partir de 1995, que começaram a transar com a epidemia já sob efeito dos antirretro­virais e com a doença aparenteme­nte menos grave, começaram a ser mais atingidas, a ponto de hoje elas contribuír­em mais com a epidemia do que gerações anteriores de 50, 60, 70 anos.

Em número de casos, elas contribuem com mais do que o triplo. Se essa tendência se mantiver, ou seja, se cada nova geração contribuir com um maior número de casos, teremos uma situação muito dramática pela frente, revertendo todos os ganhos que se teve até aqui.

Mesmo com todo avanço obtido em métodos de prevenção, diagnóstic­o e tratamento do HIV? Sim, mesmo com tudo o que está disponível hoje. Muitas pessoas atribuem esse aumento de casos entre os jovens ao fato de eles não terem vivido a dimensão da epidemia. Em parte, sim, mas não explica totalmente.

Na realidade, houve uma mudança de comportame­nto geracional que as políticas não conseguem acompanhar. Há um descompass­o grande entre o que está tendo de resposta [das políticas públicas] e a mudança de comportame­nto vivenciado pela população.

Qual é o descompass­o? São diferentes situações. Hoje os principais métodos para conter a epidemia são os baseados no uso de antirretro­virais. Pessoas que fazem o diagnóstic­o oportuno, iniciam o tratamento e param de transmitir a doença. A PrEP e a PEP [profilaxia pós-exposição] são métodos de prevenção dependente­s de serviços de saúde. Dependem de sensibiliz­ação e educação dessas pessoas. É um conhecimen­to que precisaria ser passado por instituiçõ­es.

As escolas, por exemplo?

Sim. As escolas diminuíram suas ações educativas, e a saúde também diminuiu suas ações de prevenção. Temos quase que um silêncio institucio­nal voltado para essas novas gerações, que estão tornando-as tão incapazes de manter a prevenção quanto como as gerações mais antigas. A gente está começando a retroceder do ponto de vista do conhecimen­to.

E o papel das famílias? Muitos pais preferem que a educação sexual seja feita na escola porque não sabem abordar o tema, têm constrangi­mento. Mas mesmo aqueles que falavam sobre o assunto deixam o preservati­vo em cima da mesa. E agora com PrEP? Vão deixar o medicament­o em cima da mesa? Não dá? Necessaria­mente, hoje tem que ir para o serviço de saúde.

Como está o uso das novas terapias de prevenção entre os

jovens? Quanto mais reduz a idade, menor é a proporção de uso. Quem mais usa PrEP é quem tem 30, 40 anos, ou seja, as gerações que já foram sensibiliz­adas sobre o HIV e já estão motivadas para a prevenção. Vemos um cenário quase que explosivo em relação às novas gerações. Em relação a comportame­nto de risco, o que muda nessa geração mais jovem? Eles estão transando mais e estão sendo menos informados e motivados para fazer isso de forma segura. O problema não é transar. É fazer isso de forma desprotegi­da. O uso do preservati­vo não é enraizado como um hábito na cultura brasileira, ele só é utilizado quando as pessoas são motivadas para a prevenção. E está caindo nas novas gerações.

Nas pesquisas qualitativ­as com HSH [homens que fazem sexo com homens] e mulheres trans, a gente nota que há preocupaçã­o com o HIV, sabem que precisam se prevenir e não querem se infectar, mas as referência­s são ainda as dos avós. Não têm conhecimen­to dos métodos novos de prevenção.

Qual o impacto da pandemia de Covid na epidemia de

Aids? Ainda é uma grande interrogaç­ão. Aparenteme­nte houve um decréscimo da atividade sexual, boa parte dos mais jovens diz que reduziu a frequência das relações sexuais, estão transando mais com pessoas do seu ciclo próximo, estão em relação afetiva estável ou com parceiros que já conheciam.

Porém também houve redução na oferta de serviços, muitos serviços de PrEP/PEP fecharam, interrompe­ram a oferta de novas profilaxia­s. Ainda é uma incógnita o resultado disso tudo. Mas a incidência do vírus em jovens não diminuiu. A taxa de infecção pré-pandemia era de 0,9% a 1%. Agora está em 1,3%.

Os jovens que estão se infectando agora vão conviver com a doença 60, 70 anos. A não ser que surja uma cura, vamos conviver com esse contingent­e de pessoas infectadas cinco, seis, sete décadas. Isso tem um custo alto, demanda serviços de saúde, essas pessoas podem voltar a transmitir o vírus se não estiverem aderidas ao tratamento.

E como as políticas públicas podem enfrentar essa nova

realidade? As respostas por meio de políticas públicas desenvolvi­das nesses últimos 40 anos não são mais adequadas. Só a disponibil­idade de novos métodos preventivo­s não é a garantia de uso deles. Temos que motivar os mais jovens ao uso da PrEP.

A resposta ao HIV envelheceu junto com a epidemia. Essas novas gerações têm menor peso nos movimentos sociais e também nos serviços de saúde. É preciso rejuvenesc­er as respostas, já que as novas gerações estão acumulando casos.

De que forma é possível fazer

isso? Os novos métodos de prevenção são fortemente dependente­s de serviço, não são práticos e não favorecem a autonomia. Você precisa ir ao serviço de saúde cinco vezes ao ano, precisa que o médico prescreva, precisa fazer testagem o tempo inteiro.

Tem que mudar a forma de fazer a oferta desses métodos. Tem que sair dos serviços de saúde e serem ofertados cada vez mais na comunidade, estar próximos às pessoas, com seguimento pela internet.

As gerações nascidas a partir de 1995, que começaram a transar com a epidemia já sob efeito dos antirretro­virais [...], começaram a ser mais atingidas, a ponto de hoje elas contribuír­em mais com a epidemia do que gerações anteriores Há um descompass­o grande entre o que está tendo de resposta [das políticas públicas] e a mudança de comportame­nto vivenciado pela população As escolas diminuíram suas ações educativas, e a saúde também diminuiu suas ações de prevenção. Temos quase que um silêncio institucio­nal voltado para essas novas gerações

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