Folha de S.Paulo

Conto de Edgar Allan Poe desperta atenção para jerez

- Daniel de Mesquita Benevides folha.com/geloegim

Uma das cenas mais engraçadas com bebidas no cinema está num filme B de terror. “Muralhas do Pavor” continuava a sequência de longas dirigidos por Roger Corman com base na obra de Edgar Allan Poe (1809-1849).

Dividido em três episódios, o filme foi lançado em 1962, com Vincent Price, Peter Lorre e Basil Rathbone (o Sherlock Holmes das telas) no elenco, música de Les Baxter, um dos reis da ambientaçã­o exótica, e roteiro de Richard Matheson, conhecido por “Eu Sou a Lenda”.

Em “O Gato Preto”, Lorre é o bêbado Montresor (“meu tesouro”, em francês). Expulso das tabernas por falta de dinheiro, entra por acaso numa reunião de degustador­es de vinho, cujo campeão é Fortunato (Price), um sujeito de elegância exagerada e afetação cômica, que arregala os olhos ao menor distúrbio.

Sedento, Montresor o desafia para um duelo. Sentam-se em lugares opostos de uma mesa cheia de garrafas. A contenda começa com o empoado Fortunato, que recebe uma quantidade mínima de vinho numa tigelinha e faz todas as caretas de um degustador premium: analisa a cor, cheira com diligência, dá um gole fazendo bico, bochecha ruidosamen­te e, como toque final, faz um ó com a boca para aspirar e compreende­r todas as nuances do sabor. Então, diz, pausada e triunfalme­nte: “chatêau blá-blá, ano tal. Passável”. Acerta na mosca. Aplausos.

Chega a vez de Lorre, com seu formato de barril e olhos de sapo. Ele é servido numa taça e insiste para que ponham vinho até a borda. Para espanto geral, bebe num gole só. Com a mesma rapidez dá seu veredito: “Bourgogne tátá, ano xis. Muito bom!” Uma pessoa aplaude, incerta.

E assim vai, com os dois acertando, um com o método científico e o outro intuitivam­ente, um relativiza­ndo os méritos dos vinhos, o outro adorando tudo. Até que Montresor desmaia. Impression­ado, Fortunato decide acompanhá-lo na volta para casa e acaba se envolvendo com a mulher do novo amigo. Corneado, Lorre lhe serve uma taça de amontillad­o com sonífero

Em se tratando de Poe e Corman, sabemos que a vingança será maligna. Para fins etílicos, ela vem a calhar. Isso porque os olhos de Fortunato brilham diante do espanhol amontillad­o e parecem esquecer os pomposos vinhos franceses. Ao contrário da cena da degustação, dessa vez ele bebe com gosto. “Tem o sabor do paraíso”, diz, enlevado.

No conto “O barril de amontillad­o”, inspiração para o mesmo episódio, Poe também descreve o jerez como algo sublime. Bebedor da pesada, o raquítico mago de Boston, porém, gostava mais de absinto e conhaque, o qual misturava com ópio. Durante muito tempo colocaram uma garrafa de conhaque em sua tumba. Talvez ele bebesse amontillad­o como Montresor: porque tinha álcool.

Mais de 70 anos depois de sua morte, misteriosa como seus escritos, o dono de um bar clandestin­o no Harlem, em Nova York, contou ao lendário jornalista Joseph Mitchell sobre um “teste psicológic­o” que fez. Tratou mal um casal de clientes ricos.

Entre outras sacanagens, lhes serviu uma mistura de gim, querosene e suco de uva como sendo vinho. Ao raiar do dia ouviu o elogio: “esse é o melhor amontillad­o que já tomei!”.

O casal de Fortunatos pecou pela inocência que nasce da presunção. Fique com a lebre, não com o gato preto.

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