Paulinho da Viola volta aos palcos de São Paulo
‘Sempre se Pode Sonhar’ pode soar como resposta lírica aos dias de peste e extremismo de direita no Brasil de hoje
O compositor Paulinho da Viola se acostumou a ver suas canções extrapolarem as intenções originais e se dirigirem a um tempo histórico. “Sempre se Pode Sonhar”, sua parceria com o paulista Eduardo Gudin, envolve tristezas, despedidas e sonhos perdidos. Em seu retorno aos palcos, após o corte da pandemia, Paulinho volta a cantála num mundo de pesadelos. “Meu samba fala em adeus, sim/ Mas também pode ocultar/ Um sonho que se perdeu/ e sempre se pode sonhar.”
O show “Sempre se Pode Sonhar”, também homônimo de seu disco ao vivo vencedor do Grammy Latino 2021, na categoria de melhor álbum de samba, acontece no Tom Brasil, em São Paulo, neste sábado (4).
“Quando a gente compõe alguma coisa nem todo mundo recebe de uma única maneira. Um exemplo foi quando eu fiz ‘Sinal Fechado’, que vai estar num determinado momento do show. Era uma situação que a gente estava vivendo, da repressão a muitos artistas, mas pra compor foi preciso um determinado fato ligado a uma ideia que eu não tinha muita certeza que tinha sido um sonho rápido”, afirma o sambista de 79 anos.
Em 1969, uma situação onírica se repetiu na cama. “Precisamos conversar”, alguém lhe dizia. Mas, quando? Paulinho despertava. Noites depois, um rosto conhecido surgiu na porta do restaurante Lamas, no Rio de Janeiro, e repetiu o apelo: “Precisamos conversar”. Outra vez, sem data marcada. Paulinho reteve ainda um sonho em que se sentava no fundo de um ônibus e, na altura do Monumento aos Pracinhas, na Glória, uma pessoa descia à calçada e acenava para sua janela, como quem deseja falar algo, mas sem dizer palavra.
“Essas imagens tiveram uma importância muito grande na feitura de ‘Sinal Fechado’. Me perguntaram se eu fiz essa música por causa de um momento de fechamento político. Não, não fiz com essa intenção. Fiz outras que não tinham essa intenção, mas elas já tinham esse sentimento. É maior do que isso, não é uma coisa de duplo sentido”.
Paulinho não fecha o sinal. “Sempre se Pode Sonhar” fala mais do que deve e pode soar como resposta lírica aos dias de peste e extremismo de direita no Brasil. Na preparação do show, ele esboçou sozinho um repertório, limou 40 músicas da lista final e se lançou a ensaios diários com os músicos.
Nos últimos 25 anos, cada vez que regressava aos palcos, ressurgia a expectativa de que anunciasse um novo disco de inéditas. Seu último foi “Bebadosamba”, de 1996. Entre abril e maio de 2022, a ansiedade de seus admiradores poderá ser enfim atendida, mas o músico ainda tem dúvidas sobre a estruturado álbum e revel acautela coma entrada em estúdio durante a pandemia.
“Eu não sei se é um disco. Hoje as pessoas gravam uma música e jogam na internet.
Eu não me acostumei ainda com a ideia do ‘Sempre se Pode Sonhar’ não ter um suporte físico. Eu sinto falta disso. Então, estou na dúvida se gravo uma ou duas músicas e vou lançando”, conta Paulinho.
“Eu já tive uma proposta, já tenho algumas composições. Fiz mais pro violão, o que não é muito conhecido”, antecipa. “Apesar de ter musicas pra violão, como solista de violão, o meu trabalho conhecido é o de compositor de samba. O de choros não é tanto. Tenho composições de samba pra fazer um disco. Mas eu ainda estou um pouco assustado, apesar de estar vacinado”.
Sua ausência de afobação no preparo de um disco deve se originar da própria tranquilidade com que encara o tempo fugidio. “Confesso a você que não tenho nenhum problema maior em relação a isso. A passagem do tempo é isso mesmo. Ele é o rei. Tem certas coisas que você faz em determinada época de sua vida e depois não pode mais fazer”.
“Eu às vezes fico chateado, porque sempre gostei de trabalhos manuais, de pegar coisas pesadas na marcenaria, pra cortar, pra serrar, e quando chega certa idade você não pode fazer mais isso. Você pode até fazer academia, como eu estava fazendo por recomendação médica”. Paulinho da Viola não enrola e insiste: “O tempo é o senhor”.