Folha de S.Paulo

Contexto está morto

Sobre Nietzsche, Bolsonaro e a cloroquina filosófica na era hiperconec­tada

- Renato Terra Roteirista e autor de ‘Diário da Dilma’. Dirigiu ‘Uma Noite em 67’ e ‘Narciso em Férias’ | dom. Ricardo Araújo Pereira | seg. Bia Braune | ter. Manuela Cantuária | qua. Gregorio Duvivier | qui. Flávia Boggio | sex. Renato Terra | sáb. José S

Numa manhã de quarta-feira, Nietzsche apareceu nos trending topics do Twitter. O motivo não poderia ser mais contemporâ­neo: um nude, falsamente atribuído a ele, mostrava um homem com, digamos, o bigode ereto.

“O contexto era um cara bem legal, pena que não pode ver mulher”, pensariam os mais filosófico­s. Pena que ele não está mais aqui para se defender. Ou contextual­izar.

Muita gente já percebeu, mas cabe aqui formalizar a trágica notícia com todas as letras: o contexto está morto.

Mas quem matou e quem mandou matar o contexto?

Foi esse mundão de meu Deus hiperconec­tado, cujo frenesi não permite o aprofundam­ento dos assuntos?

Foram as redes sociais, cuja construção dos egos acabou formando bolhas que nos tiram a capacidade de olhar o mundo sob perspectiv­as?

Foi a sanha julgadora-cancelador­a-lacradora das novas gerações? Foram os milicianos de Rio das Pedras?

Não somos capazes de encontrar resposta justamente porque, para isso, precisaría­mos recorrer a ele: o contexto.

Mas esta ereção pode nos trazer uma reflexão: quem se beneficia com a morte do contexto? É aí que entra a cloroquina filosófica.

Podemos pensar no que disse Fernando Holiday a Mano Brown no ótimo podcast “Mano a Mano”. O deputado que estourou por causa do MBL fez uma autocrític­a. Holiday diz se arrepender de ter reduzido o debate público a uma sequência de memes. Ele não foi o único, claro. Nem o último.

A teoria da cloroquina filosófica funciona mais ou menos assim: recusando a existência do contexto, muita gente esperta criou universos particular­es que não necessitam de fatos. E que apresentam soluções mágicas para questões complexas. E embalou tudo isso numa luta maniqueíst­a para justificar o óbvio fracasso de resolver questões complexas de maneira simples. A culpa é sempre dos outros.

A cloroquina filosófica é uma tática política que gera engajament­o. Não resta dúvidas que dá frutos. É um projeto de permanênci­a no poder. A morte do contexto elegeu presidente­s.

Ou seja: o bigodudo ereto da foto não é Nietzsche. Mas, para parte consideráv­el da população, isso não importa. Basta espalhar a ideia de que a ereção do filósofo pode macular nossas crianças. E a discussão está ganha. Talvez as eleições também.

 ?? Débora Gonzales ??
Débora Gonzales

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil