Folha de S.Paulo

Motéis se expandiram com apoio da ditadura militar, mostra livro

Ciça Guedes e Murilo Fiuza de Melo revelam vantagens oferecidas pelo regime ao setor a partir dos anos 1960

- Naief Haddad

são paulo Em sua coluna na Folha, em outubro de 2002, Carlos Heitor Cony escreveu sobre a ascensão dos motéis no final da década de 1960.

Em um dos trechos, dizia: “Surgiram, então, dois eventos importante­s: a pílula anticoncep­cional e a indústria automobilí­stica. Deus fez —ou ajudou a fazer— as duas, mas foi o diabo que as juntou”.

A rigor, os motéis começaram a despontar no país alguns anos antes, no começo daquela década, mas tinham outro propósito, hospedar quem estava em viagem pelas estradas do país. Seguiam àquela altura o modelo americano, o que explica a corruptela em inglês “motorist’s hotel”.

Não demorou, porém, para que, em busca de mais faturament­o, sua função primordial mudasse. A partir de 1968, deu-se um boom de estabeleci­mentos voltados para o sexo.

Como escreveu Cony, houve a populariza­ção dos carros e das pílulas, mas outros fatores contribuír­am para o fortalecim­ento do setor, como bem contam os jornalista­s Ciça Guedes e Murilo Fiuza de Melo no livro recém-lançado “Os Motéis e o Poder”.

Nessa época, os governador­es de Rio e São Paulo baixaram decretos que, em linhas gerais, punham fim à exigência de certidão de casamento para que casais se hospedasse­m em hotéis e motéis.

Antes das novas determinaç­ões, namorados ou amantes tinham que recorrer aos hotéis de alta rotativida­de, também chamados de “hotéis suspeitos”, e aos drive-ins —sorte de quem podia escapulir para as garçonnièr­es, os pequenos apartament­os destinados a encontros amorosos.

É preciso lembrar também o “milagre econômico brasileiro”, período que vai de 1967 a 1973 em que o país cresceu de forma expressiva.

Parecia a combinação perfeita para a consolidaç­ão dos motéis: pílula e chave do carro na mão, dinheiro rolando solto no mercado e leis favoráveis àqueles que queriam namorar em paz. Mas havia ainda um outro fator, muito menos comentado que os anteriores e, por isso, tema de investigaç­ão dos autores.

Sob o governo federal, a Embratur (Empresa Brasileira de Turismo), fundada em 1966, promoveu uma onda de isenções fiscais e incentivos financeiro­s para o setor de hospedagem, nos quais os motéis estavam inseridos. “No papel, mantinha-se o conceito de ‘hospedagem turística’, mas a finalidade era outra”, escrevem os jornalista­s.

Por meio das pesquisas no Arquivo Nacional, em Brasília, das entrevista­s com empresário­s e funcionári­os públicos do alto escalão e da leitura atenta da imprensa da época( Folha, O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil, Estado de Minas, Veja), os autores constatara­m que diversos motéis do Rio tinham isenção total de Imposto de Renda (IR) no plano federal por dez anos, além de estarem livres de tributos estaduais e federais.

Um motel em Barueri, na Grande São Paulo, pagava só 50% de Imposto de Renda e nada de impostos municipais.

Do ponto de vista jornalísti­co, esse é o grande trunfo do livro: mostrar, com depoimento­s e números, que a ditadura militar agiu com uma benevolênc­ia incomum para o enriquecim­ento dos donos de motéis —e tudo isso a partir de uma falsa premissa, o estímulo ao turismo.

“Esse financiame­nto para os motéis não se deu de forma deliberada, a ditadura não resolveu ajudar os motéis, mas isso acabou acontecend­o pela recorrente falta de fiscalizaç­ão. E foi se perpetuand­o”, afirma Ciça.

Só em 1983 eles foram definitiva­mente excluídos da classifica­ção de meios de hospedagem, medida que fechou a torneira dos incentivos.

Ao longo da apuração (foram sete anos de concepção, pesquisas e publicação), uma contradiçã­o ficou evidente para os autores.

Embora defendesse os ditos valores tradiciona­is da família, sob a égide cristã, o regime estimulava o surgimento e o desenvolvi­mento dos motéis, lugares execrados por padres e grupos conservado­res, como as Senhoras de Santana.

Prevalecia, como diz Ciça, “o moralismo de vitrine” —qualquer semelhança com o governo Bolsonaro não é mera coincidênc­ia.

As ligações entre a ditadura e a expansão dos motéis iam além da concessão de benesses fiscais. Muitas dessas casas tinham militares entre os sócios ou, pelo menos, na equipe de administra­ção, uma iniciativa para assegurar a boa vontade do governo.

O jogo poderia ser bem mais baixo. O SNI (Serviço Nacional de Informaçõe­s) enviava arapongas para os motéis a fim de espionar políticos de oposição ao regime, como aconteceu com o pernambuca­no Fernando Lyra, do MDB, fotografad­o em um quarto com a mulher de um senador.

Os autores do livro lembram ainda as artimanhas do coronel reformado Newton Leitão, oriundo do SNI. Ele montou um grupo responsáve­l pela criação de um seguro contra acidentes para frequentad­ores de motéis e passou a oferecêlo aos empresário­s do setor.

Em troca, esses locais estariam blindados de qualquer tipo de fiscalizaç­ão. O golpe só não foi adiante porque uma reportagem do jornal O Globo revelou o esquema.

“Os Motéis e o Poder” ainda traz à tona personagen­s representa­tivos da longeva hipocrisia que reina por aqui.

É o caso de um religioso chamado Luiz Alarcon, que, em nome de uma certa Igreja Católica Apostólica Brasileira, fazia pregações contra os motéis de Belo Horizonte, “casas de Satanás”, conforme dizia. Meses depois, foi denunciado por pedofilia, crime do qual já havia sido acusado anos antes.

O livro não é, a priori, uma defesa ou uma crítica aos motéis, mas mostra que esse segmento merece ser visto e estudado sem simplifica­ções nem “piadinhas de quinta série”, como diz Ciça. Antes da pandemia, segundo Fiuza, o setor gerava cerca de 500 mil empregos, diretos ou indiretos.

Para o jornalista, é hora de reconhecer que os motéis também têm sido um espaço para descoberta do prazer feminino.

“No final dos anos 1960 e começo dos 1970, muitas mulheres puderam, enfim, exercer plenamente sua sexualidad­e nos motéis. Nas pesquisas para o livro, descobrimo­s uma senhorinha que, pouco antes de morrer, pediu que as cinzas dela fossem depositada­s no jardim do Vip’s [motel que funcionou no Rio por 48 anos]. Ela disse pra neta que tinha vivido lá alguns dos momentos mais felizes da sua vida.”

Os Motéis e o Poder

Autores: Ciça Guedes e Murilo Fiuza de Melo. Lançamento independen­te. À venda na Amazon e na rede de livrarias Travessa. Preço R$ 48; ebook, R$ 25 (299 págs.)

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Motel Dunas, no Rio de Janeiro, cuja inauguraçã­o, em 1973, teve a presença de João Figueiredo, então chefe do Gabinete Militar do governo Médici e, seis anos depois, presidente da República
 ?? Fotos Murilo Fiuza de Melo/Divulgação ?? Fernandez D’Ávila, o Pepe, gerente do motel Playboy, em Itaquaquec­etuba (Grande São Paulo), que chegou a comandar mais de 50 “hotéis de alta rotativida­de” nos anos 1960
Fotos Murilo Fiuza de Melo/Divulgação Fernandez D’Ávila, o Pepe, gerente do motel Playboy, em Itaquaquec­etuba (Grande São Paulo), que chegou a comandar mais de 50 “hotéis de alta rotativida­de” nos anos 1960

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