Folha de S.Paulo

‘Mulher, Roupa, Trabalho’ não diz o que vestir, mas questiona por que vestimos

Advogada e consultora de moda tentam desconstru­ir associação entre masculinid­ade e pertencime­nto nas roupas do ambiente profission­al

- Ana Luiza Tieghi

são paulo Um livro sobre mulheres e roupas para trabalhar não precisa ensinar a se vestir melhor. A advogada especializ­ada em gênero Mayra Cotta e a consultora de moda Thais Farage criaram uma obra que busca explicar por que toda mulher já sentiu que não pertencia totalmente a um ambiente profission­al. E não, a culpa não era da roupa que ela estava usando.

O livro “Mulher, Roupa, Trabalho: Como se Veste a Desigualda­de de Gênero” (ed. Paralela) vai da Antiguidad­e ao Iluminismo e de Hegel às pensadoras feministas da terceira onda para explicar a origem do espaço de trabalho, quando ele passou a se diferencia­r do ambiente privado e familiar e o que fez com que os homens —brancos, em especial— o dominassem.

Segundo Cotta, a ideia partiu da experiênci­a de Farage com clientes de sua consultori­a que queriam se sentir mais confortáve­is com a imagem profission­al que passavam.

“Ela entendeu que podia até dar sugestões e dicas para as mulheres, mas, no fundo, não teria roupa nenhuma que resolveria nosso permanente não pertencime­nto ao mundo do trabalho”, afirma a advogada, em entrevista à Folha.

As roupas e os símbolos que as peças carregam (um vestido se assemelha mais a um quadro de Picasso do que a uma cômoda, Cotta e Farage ressaltam) podem ser usados para aliviar a falta de pertencime­nto, mas é preciso jogar um jogo bastante traiçoeiro.

Deve-se imitar em algum grau o vestuário masculino, e a obra destaca o papel do terno como o símbolo máximo do poder e do status do homem —há um trecho revelador sobre o significad­o da gravata. No entanto, sua variação para as mulheres, o terninho, mais justo e curto, nunca transmitir­á a mesma mensagem.

Ao mesmo tempo, fantasiars­e de homem também não é ingresso para o mundo masculino do trabalho, porque a farsa pode ficar evidente, e trazer consequênc­ias: é o que sofrem os homens trans ou mulheres que optam por um visual masculino no dia a dia.

“Tem que demonstrar que você sabe que não é um homem, senão é pior, entra na homofobia, no preconceit­o pesado de gênero”, diz Cotta.

O jeito é tentar um equilíbrio perfeito entre símbolos masculinos e femininos. “Tem o terno, mas ele é mais acinturado, tem calça, mas é mais apertada, tem camisa de botão, mas ela fica desabotoad­a, mostrando o colo”, afirma a advogada.

Ainda assim, a partida da aceitação não está ganha. Em seus esforços para se encaixar, toda mulher corre o risco de ser considerad­a muito velha ou nova, vulgar ou conservado­ra, arrumada ou desleixada, e não só pelos homens mas também por outras mulheres, que reconhecem os símbolos que roupas e acessórios transmitem.

“Poder ser autêntico e não se importar com a aparência é um privilégio que só os homens brancos têm na política institucio­nal e no mercado formal de trabalho”, escrevem as autoras.

Cotta é a advogada que defende a atriz Dani Calabresa e outras mulheres no processo contra Marcius Melhem por assédio sexual. O livro tem um capítulo dedicado ao assédio no trabalho.

O vestuário está diretament­e ligado a esse tema. “A roupa é muito instrument­alizada pelos homens para justificar o assédio que cometem”, diz Cotta.

Mais do que como provocação, o vestuário é usado como tentativa de defesa pelas mulheres. A advogada conta que, quando trabalhou no Congresso Nacional, ambiente que considera um dos mais tóxicos pelo qual já passou, tinha a preocupaçã­o de se vestir de forma a chamar a menor atenção possível.

“Eu queria ao máximo sublimar meu corpo, fazê-lo desaparece­r para ninguém me ver, me atormentar, e conseguir trabalhar.”

Apesar dos esforços, o livro lembra que mudar de roupa não resolve o problema do assédio ou da discrimina­ção no trabalho, porque não são questões estéticas. Tanto que, mesmo em home office, elas continuam ocorrendo.

“O exercício da dominação masculina é muito adaptável, começamos a ver muitos casos de mulheres sendo assediadas por mensagem privada durante reuniões”, afirma a advogada.

Se não é possível controlar a imagem que a roupa vai passar no trabalho, nem conseguir igualdade de condições por meio dela, o que vestir? Segundo Cotta, uma tarefa que o livro deixa para os leitores é tentar desnatural­izar a associação entre poder e masculinid­ade.

Para as mulheres que vivenciam privilégio­s perante outras, por serem brancas, ricas, altas, magras ou ocuparem cargos elevados, por exemplo, as autoras sugerem provocar pequenas rupturas no que a sociedade espera. “Deixar de pintar o cabelo pode ser uma ação individual que aos poucos constrói uma coletivida­de um pouco menos hostil às mulheres”, dizem.

Ir pelo caminho inverso, rumo a uma feminilida­de mais marcante e óbvia, pode ser igualmente confrontad­or no ambiente profission­al. A ideia não é culpar as mulheres por usarem ou deixarem de usar algo, mas fazer pensar sobre os motivos de cada escolha.

“Experiment­e o desconfort­o, permita-se não cumprir toda a lista de ‘bela estampa de aprovação social’ [...] lute para que outras mulheres tenham espaço para não ser tão femininas, ou para ser femininas demais”, escrevem.

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Renato Parada/Divulgação A consultora de moda Thais Farage e a advogada Mayra Cotta, autoras do livro
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Mayra Cotta e Thais Farage, ed. Paralela (229 págs.), R$ 54,90
Mulher, Roupa, Trabalho: Como se Veste a Desigualda­de de Gênero Mayra Cotta e Thais Farage, ed. Paralela (229 págs.), R$ 54,90

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