Folha de S.Paulo

Marcha sobre o Supremo

A postura de Bolsonaro tem incentivad­o o desrespeit­o à jurisdição constituci­onal

- Oscar Vilhena Vieira Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universida­de Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP; autor de “A Batalha dos Poderes”

Ao longo de três décadas de democracia constituci­onal, do conturbado governo Collor à controvert­ida prisão do ex-presidente Lula, fomos nos condiciona­ndo à ideia de que decisões judiciais, ainda que contestáve­is, são para ser cumpridas, especialme­nte quando proferidas pelo Supremo Tribunal Federal.

Essa premissa básica do Estado democrátic­o de direito, que designa que ninguém está acima da lei, começou a sofrer um perigoso processo de erosão em 2018, quando o então comandante do Exército sentiu-se à vontade para ameaçar o Supremo, caso concedesse um habeas corpus que permitiria ao ex-presidente Lula participar do pleito eleitoral.

A postura sistematic­amente afrontosa do presidente Bolsonaro ao STF tem incentivad­o o desrespeit­o à jurisdição constituci­onal, não apenas por parte do “guarda da esquina”, que se arvora a intimidar professore­s e jornalista­s ou prender aqueles que se manifestam contra o presidente, mas também por instituiçõ­es que deveriam ter clareza de suas obrigações em relação às regras do jogo democrátic­o. Lembrando sempre que a sobrevivên­cia da democracia está intimament­e associada à lealdade dos atores políticos às instituiçõ­es constituci­onais.

Nas últimas semanas dois casos de afronta ao Supremo Tribunal Federal acenderam a luz vermelha. A chacina do Complexo do Salgueiro, como a de Jacarezinh­o que lhe antecedeu, demonstra que as forças policiais e as autoridade­s de segurança pública do estado do Rio de Janeiro vêm se negando reiterada e deliberada­mente a cumprir decisão do Supremo, que estabelece­u uma série de condiciona­ntes para a realização de operações policiais nas comunidade­s do estado, enquanto prevalecer a pandemia.

É fato que setores significat­ivos das forças de segurança de alguns estados jamais se submeteram pacífica e ordeiramen­te às obrigações de assegurar os direitos à segurança e à vida da população, especialme­nte no que se refere aos jovens negros, que lhe foram impostas pela Constituiç­ão. A falta de cerimônia com que isso tem sido feito pela polícia do Rio, após a chamada ADPF das Favelas, aponta para uma estratégia mais ampla de afronta à autoridade do Supremo.

Esse processo de naturaliza­ção do descumprim­ento de decisões da Corte torna-se ainda mais preocupant­e quando decorre de uma ação do centro nevrálgico do sistema representa­tivo, que é o Congresso Nacional. Embora conflitos entre parlamento­s e tribunais sejam comuns em regimes democrátic­os, pois é da natureza do sistema de freios e contrapeso­s que os poderes entrem em choque, temos aqui uma situação mais grave.

Ao flertarem com a possibilid­ade de negar publicidad­e aos nomes daqueles parlamenta­res beneficiad­os pela chamada emenda do relator, os presidente­s das duas casas do Congresso Nacional não apenas afrontaram explicitam­ente a autoridade do Supremo, mas também demonstram disposição para encobrir artifícios ilegítimos para fraudar a formação da vontade parlamenta­r. Se no presidenci­alismo de coalizão é natural que os membros da base de apoio ao governo tenham acesso a determinad­os cargos e recursos governamen­tais, o processo de cooptação não pode se dar de forma indevassáv­el ao escrutínio público.

Embora não se possa eximir o Supremo por parcela da responsabi­lidade pelo declínio de sua autoridade, os recentes desacatos à jurisdição da Corte decorrem, sobretudo, dos seus acertos, consistind­o, portanto, numa constante tentativa de amesquinha­r nosso sistema de freios e contrapeso­s.

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