Textos de Alice Walker encontram beleza na resistência cotidiana
Autora propõe modelo que se impõe sobre a segregação e a pobreza com ‘Em Busca do Jardim de Nossas Mães’
LIVROS Em Busca do Jardim de Nossas Mães ★★★★★
Autor: Alice Walker. Trad.: Stephanie Borges. Ed.: Bazar do Tempo. R$ 69,90 (376 págs.)
O ensaio que dá título a essa reunião de textos escritos por Alice Walker entre 1966 e 1982 sintetiza a proposta do livro: do começo ao fim, “Em Busca do Jardim de Nossas Mães” pretende reconhecer certa ancestralidade, buscando beleza e valor cultural onde há dificuldades para notá-los.
Contra o apagamento de referências negras e o silenciamento imposto por meio da escravidão, da segregação e da pobreza, a autora procura valorizar ícones culturais e encontrar a poesia da resistência cotidiana.
O “legado de respeito” e a “capacidade de persistir” que identifica na maneira como sua mãe se dedica às flores são postos ao lado da força surpreendente com que a escritora Buchi Emecheta se dedicou à literatura e ao espírito revolucionário do poeta Langston Hughes.
Em textos que misturam reflexões autobiográficas, crítica literária, memórias, versos e citações, Walker percorre autores, obras, situações e temas vistos como modelo —ao longo do qual acaba por corresponder ao seu próprio ideal de artista negro revolucionário, atuando como “um arquivo ambulante de poemas, histórias e canções, de pessoas, lugares, façanhas e desventuras”.
Entre as suas referências estão autores ligados, como Hughes, à Harlem Renaissance, período de florescimento da cultura afro-americana nos Estados Unidos em torno de 1918 a 1930. Jean Toomer, que escreveu o romance “Cane”, de 1923, é tema de ensaio sobre sua “vida dividida” entre a literatura antirracista e seu afastamento da população negra.
Zora Neale Hurston, autora do livro considerado pela ensaísta como o mais importante de sua vida, o romance “Seus Olhos Viam Deus”, de 1937, é homenageada por uma lápide comprada por Walker, que relata a saga no saboroso “Em Busca de Nora”.
Walker, primeira mulher negra a receber o Pulitzer de ficção, por “A Cor Púrpura”, de 1982, romance levado ao cinema por Steven Spielberg em 1985, às vezes se dirige às mulheres negras a quem pretende fornecer modelos —o que é fundamental, conforme acredita, para enriquecer e ampliar “a visão que uma pessoa tem da existência”.
Em geral, porém, parece pressupor diferentes perfis de leitor. Seu olhar sobre a literatura nunca é especializado, e o debate racial se dá com base no diálogo e na solidariedade.
Um dos momentos mais bonitos do livro é, sem dúvida, “A Pátria de Meu País são os Pobres”, um ensaio no sentido forte do termo, em que Walker conduz um passeio pela Cuba revolucionária.
Censurando a perseguição aos homossexuais, reconhece esforços para promover a igualdade de gênero e elogia os avanços em relação à desigualdade racial. Otimista e esperançosa, como aliás se mostra em todo o livro, prefere apostar que os cubanos “irão se tornar mais e mais sensíveis em relação aos membros de sua sociedade que agora são despossuídos na revolução”.
O relato da chegada à ilha convoca o melhor do olhar de Walker. Recepcionada em Havana por homem parecido com o seu pai, demora-se na comparação entre os dois.
Ambos negros e pobres, cumprem trajetórias distintas, por força da revolução, na qual o cubano colabora. A diferença entre seus destinos costura a dimensão pessoal à coletiva de forma contundente, sofisticada e, sem risco de exagero, inesquecível.
Acompanhando a combinação entre beleza e consistência que marca os ensaios de Walker, a edição chama atenção pelo projeto gráfico, o aparato crítico, e a ótima tradução de Stephanie Borges.