Folha de S.Paulo

As plantas nos fizeram extraterre­stes, diz filósofo italiano Emanuele Coccia

Pensador que está na Flip conta que visões indígenas ajudam a combater exploração da natureza

- Nathan Fernandes

ubatuba (sp) Para o filósofo italiano Emanuele Coccia, 45, todos os seres humanos são alienígena­s. “Se olharmos o mundo pelo ponto de vista das plantas e dos organismos que fazem fotossínte­se, entenderem­os que a vida na Terra é meio extraterre­stre, por causa da capacidade que eles têm de capturar a luz do Sol”, explica. “Por causa das plantas, de certa forma, somos todos extraterre­stres.”

O intelectua­l é professor titular de filosofia na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. Em seu trabalho, traz um assunto que, para ele, é negligenci­ado pela filosofia ocidental: as plantas.

O tema também orienta as discussões da Flip 2021, da qual ele participa no domingo, dia de encerramen­to, ao lado de Adriana Calcanhott­o.

Em obras como “Metamorfos­es” (ed. Dantes) e “A Vida das Plantas” (ed. Cultura e Barbárie), Coccia reflete sobre como esses seres são capazes de ampliar a percepção sobre a vida humana, que descende de uma única vida: a da Terra.

Para ele, a vida em si não é nada além do que a metamorfos­e da matéria que constitui o mundo. Por isso, o nascimento de qualquer ser vivo evidencia que todos somos a continuida­de de outros indivíduos.

“Eu tenho 45 anos, mas a vida em mim tem, pelo menos, 30 anos a mais, consideran­do a idade da minha mãe, e assim por diante. Nossa vida é tão antiga quanto a humanidade. Cada indivíduo carrega em si uma vida que é tão antiga quanto a própria vida”, acredita. “Esse é o ponto de virada para termos uma percepção espiritual­izada da vida.”

Segundo o filósofo, essa é a razão pela qual a ideia de “se integrar à natureza” seria ingênua. “Nós somos Gaia em si”, reflete. “Nosso corpo é uma forma estranha que a Terra encontrou para observar a si mesma a partir de um ponto de vista externo ou interno. A questão não é se integrar, mas que forma nós queremos dar ao mundo? Isso se assemelha muito com perguntar: como nós queremos viver?”

Reflexões complexas que partem de simples observaçõe­s não são novidade para as concepções de vida indígenas. E Coccia sabe disso.

Não à toa, o italiano se mostra empolgado com o trabalho de antropólog­os brasileiro­s como Eduardo Viveiros de Castro. “O que ele escreve tem um grande impacto sobre mim. Me lembro de quando li seu ‘Metafísica­s Canibais’. Foi explosivo”, diz, reforçando a importânci­a de obras que ajudem as sociedades ocidentais a reconhecer­em outra forma de perceber a natureza, que não a contraponh­a aos humanos. “A ciência da natureza não é apenas biológica, mas etnográfic­a.”

Ele acredita que, apesar de descoberta­s da biologia —como a de Lynn Margulis, nos anos 1980, que traz evidências de que a formação das células dos seres vivos se dá através de uma relação de cooperação—, a revolução no pensamento virá pela antropolog­ia.

“Em uma aula, perguntei aos alunos quais eram os pensadores mais importante­s da atualidade para eles. Os nomes levantados foram quase todos de antropólog­os como Viveiros de Castro, Donna Haraway e Bruno Latour”, conta. “Isso significa que estamos nos aproximand­o da natureza através da cultura. É um grande passo para deixar de objetificá-la.”

Ao ser questionad­o sobre o dito colapso da civilizaçã­o ocidental, Coccia comenta sobre a importânci­a do clássico “A Queda do Céu”, do francês Bruce Albert e do líder yanomami Davi Kopenawa.

“Essa obra mostra que não precisamos fazer uma oposição entre sociedades ocidentais e não ocidentais, e podemos convergir em algo maravilhos­o. Isso nos faz superar essa questão do colapso”, acredita. “O interessan­te é pensar em como podemos produzir bases para que culturas diferentes possam se encontrar.”

O pensador afirma que, em muitos casos, os antropólog­os também podem servir como agentes de colonizaçã­o, mas, “antes de tudo, a antropolog­ia é uma tentativa de produzir uma tradução recíproca e um casamento entre culturas”.

Por isso, ele considera urgente a criação de espaços de integração. “Através do livro de Kopenawa e Albert, por exemplo, a cultura yanomami se tornou mais compreensí­vel para o Ocidente, mas o livro é a expressão do fato de que a cultura ocidental também se tornou algo que pode ser pensado de um ponto de vista yanomami, e isso é incrível.”

Coccia lembra que Kopenawa é um xamã, e, na cultura yanomami, são aqueles com habilidade para se conectar com o espírito da floresta. “Acho que o livro nos conecta com Kopenawa e os yanomami, e, consequent­emente, através deles nos conectamos com o espírito da floresta”, pontua. “Por isso, é tão interessan­te adentrar a natureza pela porta da antropolog­ia. Assim, aprendemos a não considerá-la como um objeto, mas como algo cultural.”

É assim que, segundo o filósofo, podemos aprender a perceber todas formas de vida como expressões diferentes de uma única fonte. “O fato de uma pessoa ter nascido brasileira e outra italiana é resultado do acaso, isso não as impede de se comunicar e de se colocarem uma no lugar da outra”, reflete. “Da mesma forma, temos que ser capazes de reconhecer que ser uma planta, um cachorro ou um ser humano também é resultado do acaso. Nós somos a mesma coisa, compartilh­amos a mesma vida.”

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Pauline Deschamps/Divulgação O filósofo italiano Emanuele Coccia

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