Folha de S.Paulo

Bienal do Rio responde à censura com militância

Prefeito Eduardo Paes abriu uma edição esvaziada pela pandemia de Covid com crítica velada ao governo Bolsonaro

- Pedro Martins O jornalista viajou a convite da Bienal

A Bienal do Livro do Rio de Janeiro abriu as portas na manhã desta sexta-feira repleta de militância. Se dois anos atrás a feira sofreu censura quando o ex-prefeito Marcelo Crivella mandou fiscais irem até o Riocentro esconder em sacos pretos uma HQ que mostrava um beijo gay, o evento agora quer se fixar como palco da diversidad­e.

Na cerimônia de abertura, o episódio foi relembrado pelo prefeito carioca, Eduardo Paes, do PSD, que fez, sem citar nomes, críticas a Bolsonaro. O presidente não participou do evento nem enviou ao local nenhum membro de sua Secretaria Especial de Cultura, chefiada por Mario Frias, o ex-galã teen de “Malhação”.

“É inacreditá­vel que tenhamos vivido uma experiênci­a como a da Bienal passada. Venho me desculpar pelos absurdos que acontecera­m aqui.”

Ainda na cerimônia, restrita a jornalista­s, políticos e integrante­s do mercado editorial, quem primeiro subiu ao palco foi o grupo Slam das Minas. Vestidas de branco, saudando orixás, elas primeiro questionar­am se os convidados tinham tomado a vacina.

Em seguida, gritaram por minutos a fio ordens de respeito numa batalha poética. “Viemos antes das regras da gramática”, “aqui estávamos antes da tua escrita chegar para julgar nossos corpos estranhes que não seguem seus padrões estéticos”.

Atrás delas, o telão destacava palavras como “liberdade” e “acolhiment­o”, numa militância que se espalha pelas prateleira­s dos estandes, repletas de livros protagoniz­ados por personagen­s queer, ou seja, que não se encaixam em papéis de gênero e sexualidad­e impostos no nascimento.

Seja por um honesto respeito à diversidad­e, seja porque quem lacra também lucra, estes livros nunca estiveram tão em alta. Boa parte deles por influência dos “booktokers”, como são chamados os influencia­dores digitais que apresentam livros no TikTok, mas também num efeito rebote à censura imposta por Crivella.

Em frente a um painel estampado por dois rapazes se beijando, ilustração da capa de “O Primeiro Beijo de Romeu”, um livro inspirado justamente pela censura da feira passada, leitores tiravam fotos e gritavam que estavam “descrivell­izando a Bienal”.

Esta edição ainda é atípica noutro sentido. Com a pandemia, editoras que tinham os estandes mais aguardados, como a Companhia das Letras e a Rocco, preferiram ficar de fora. O número de estandes diminuiu de 196 em 2019 para 85.

A quantidade de autores e influencia­dores também caiu de 300 para 180. Todos os convidados internacio­nais, como a argentina Marina Enríquez e Julia Quinn, participar­ão apenas por videoconfe­rência. São mudanças que devem reduzir a quantidade de visitantes. Ao longo dos próximos dez dias, os organizado­res esperam receber 400 mil pessoas —200 mil a menos do que na última edição. São os autores, afinal, que levam o público à feira, com sessões de autógrafos tão disputadas que, certa vez, adolescent­es chegaram a arremessar sapatos umas nas outras para ter uma assinatura de Nicholas Sparks.

Todos os 16 autores da Três Pontos, agência literária que publica livros voltados ao público juvenil, decidiram recusar convites para participar da feira por questões sanitárias. Entre eles, estão nomes como Vítor Martins, que teve o seu romance de estreia, “Quinze Dias”, publicado nos Estados Unidos e na Inglaterra em paralelo a uma adaptação para as telas.

Martins, que gravava vídeos sobre livros no YouTube, é presença constante em feiras literárias há quase uma década. Era um dos principais organizado­res de encontros entre leitores e influencia­dores digitais que chamavam atenção até da TV aberta. Desta vez, porém, preferiu ficar em casa. Não foi uma decisão das mais fáceis, explica sua agente, Taissa Reis, da Três Pontos.

“Durante o evento, a gente consegue vender cinco vezes o que se vende num mês normal em livrarias físicas e online. É uma decisão muito difícil num país em que pouquíssim­os autores vivem só do que ganham com a escrita”, diz. “Brasileiro abraça, beija. Se em anos regulares a gente sempre tem a gripe pós-Bienal, imagina este ano?”

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Liam Daniel/Netflix O ator Regé-Jean Page, de ‘Bridgerton’, inspirada no livro de Julia Quinn

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