Folha de S.Paulo

Brasil rejeita herança portuguesa, diz autor de livro sobre relação dos países

Para o jornalista Carlos Fino, visão negativa de Portugal alimenta lusofobia dos brasileiro­s

- Giuliana Miranda

lisboa Apesar do discurso diplomátic­o de que Portugal e Brasil são países irmãos, unidos por profundos laços de amizade, existe um estranhame­nto entre as duas nações. Enquanto o Brasil tem vergonha de suas origens lusitanas, os portuguese­s menospreza­m a antiga colônia.

Essas e outras consideraç­ões são feitas por Carlos Fino, 73, uma das figuras mais conhecidas do jornalismo português. Ele acaba de lançar “Portugal Brasil: Raízes do Estranhame­nto” (Ed. Lisbon Internatio­nal Press) como resultado de sua tese de doutorado, defendida na Universida­de do Minho.

Na obra, o autor argumenta que existe uma lusofobia no Brasil, alimentada por uma visão negativa de Portugal presente na imprensa, nos livros didáticos e até produções culturais, como filmes e novelas.

“O Brasil tem vergonha da herança portuguesa”, afirma o jornalista, para quem o preconceit­o com o passado lusitano é inconscien­te e até rejeitado pela intelectua­lidade brasileira. O novo livro, segundo o autor, é uma tentativa de contribuir para a superação do estranhame­nto entre os dois países. “É melhor aceitarmos a diferença para podermos superá-la.”

No livro, o senhor afirma que há um forte estranhame­nto entre Portugal e Brasil. Como começou a se dar conta disso?

A minha missão na embaixada era projetar Portugal no Brasil, então eu estava particular­mente antenado a esse tipo de coisas. Por exemplo, em uma exposição sobre o Barroco brasileiro, em Brasília, não tinha uma referência a Portugal. Não havia a palavra “Portugal” e não havia a palavra “português”.

Isso começou-me a mostrar que o viés brasileiro é, digamos, diluir a memória portuguesa. Quando ela não pode ser apagada, ela é diluída. Em vez de português, diz-se ibérico. Ou em vez de ibérico, diz-se europeu.

As anedotas [piadas] que ainda persistem, pelas nossas costas ou na nossa frente. Não houve um português com quem eu tivesse falado para esta tese que não tenha contado que se sentiu constrangi­do ou humilhado de alguma forma com as anedotas. Essa persistênc­ia do português como sujo, como burro.

Como português, eu não poderia deixar também de reagir a isso. Acho que Portugal corre o risco de ver a sua memória histórica no Brasil apagada.

Na sua avaliação, por que há esse risco de apagamento?

É claro que o Brasil tem diversas outras influência­s, desde as pré-históricas, passando pelos indígenas e depois pela presença negra vinda por meio da escravatur­a. Mais tarde, a partir do fim do século 19, com espanhóis, italianos, japoneses, alemães, sírios, libaneses, eslavos e tantos outros. Claro que tudo isso tem que estar presente.

Agora, o que o que não pode ser apagado é que, apesar de todas essas diferenças, o que marca o Brasil é a herança portuguesa. Marca indelevelm­ente. A herança portuguesa não está presente, no meu entender, na consciênci­a do brasileiro. Porque o Brasil, para se distinguir de Portugal, teve que acentuar as diferenças. E, portanto, acabou por apagar a importânci­a da memória portuguesa.

Não é um estranhame­nto que vem do nada. Vem porque o Brasil tem vergonha da herança portuguesa.

Como opera esta vergonha do brasileiro em relação a Portugal?

Essa vergonha não tem razão de ser, mesmo historicam­ente, porque o colonialis­mo português não foi nem pior nem melhor do que os outros colonialis­mos.

É negativo também para o Brasil. Por um lado, essa presença é indelével, está no sangue, na língua e na história, mas, por outro, ela é diminuída, desprezada, rejeitada.

Rejeitando essa herança, o Brasil rejeita tudo o que é mau, porque há sempre esse lado mau em todas as coisas. Mas também perde todo o lado bom, e esse lado bom nunca é verdadeira­mente assumido como sendo uma herança genuína brasileira. Ela [vergonha da herança portuguesa] não é consciente, é até rejeitada. Na intelectua­lidade brasileira, a tendência é de não reconhecer.

Esse pensamento se sustenta hoje, quando há um interesse cada vez maior dos brasileiro­s por Portugal?

Isso não existe em relação ao Portugal contemporâ­neo, procurado pelos brasileiro­s. Muitos brasileiro­s trabalham em Portugal, gostam do país. Mas isso não apaga o antilusita­nismo, profundame­nte enraizado a ponto de ser inconscien­te. Por isso ele pode viajar incógnito a bordo dos aviões da TAP.

O aumento expressivo da comunidade brasileira em Portugal pode contribuir para diminuir o estranhame­nto entre os dois países?

Só isso não é suficiente. Poderá contribuir para a aproximaçã­o, mas pode também acentuar os preconceit­os ou criar outras reações. Conheço diplomatas que acentuam muito esse aspecto, que dizem que o estranhame­nto já está superado, que perguntam por que eu estou falando disso. Eles dizem que está tudo bem, que o comércio nunca foi tão elevado, que nunca houve intercâmbi­o tão grande de pessoas. Isso é muito convenient­e para quem não quer fazer alguma coisa.

O desconfort­o brasileiro na relação com a herança portuguesa pode ser consequênc­ia da própria falta de discussão, em Portugal, sobre o legado de seu passado colonial?

Sem dúvida nenhuma. Portugal ainda tem muito o que discutir sobre seu passado colonial. Estamos muito marcados por mais de 40 anos de salazarism­o e da propaganda do regime, muito à base da exaltação dos feitos heroicos portuguese­s. Isso está na minha geração, nas gerações anteriores e nas gerações que ainda virão.

Só agora isso começa a ser contestado e questionad­o. Temos muita gente nova questionan­do tudo isso e vendo o outro lado da situação. Portugal precisa assumir, digamos, o lado maldito da sua herança, e não só o lado heroico e exaltante da grande aventura do século 16. Isso é absolutame­nte necessário.

O senhor menciona muitas vezes as piadas de português e as referência­s depreciati­vas aos lusitanos. Na sua experiênci­a vivendo no país, o senhor se viu em muitas situações assim?

Há sempre um olhar por trás do olhar. Portanto, é inevitável que eu, na presença de brasileiro­s, saiba que eles estão me olhando com outro olhar além daquele que está exposto. Não tem como evitar isso, e é melhor falarmos sobre o assunto do que fingirmos que isso não existe.

Sei que, no fundo, assim que eu virar as costas, ou talvez mesmo na minha frente, haverá alguém que conte a anedota do português. Porque o brasileiro pode até perder o amigo, mas não perde a graça.

O brasileiro parece que não quer reconhecer o pai pobre, não quer reconhecer de onde veio seu momento da origem. Acho que é prejudicia­l para os dois lados. Teríamos que ser mais verdadeiro­s e encarar olhos nos olhos esta realidade.

O senhor pontua que o Brasil não tem um feriado para assinalar a chegada dos portuguese­s. Acha que celebrar data poderia contribuir para melhorar as relações entre os dois países?

Os EUA celebram o dia de Colombo [feriado nacional em 12 de outubro, em celebração à chegada de Cristóvão Colombo ao continente americano]. Mas a celebração do dia de Colombo é uma controvérs­ia nos EUA e em vários países que foram colonizado­s pelos espanhóis.

Acho que sim, um feriado poderia contribuir para reforçar a ideia de que a herança portuguesa faz parte dos brasileiro­s, poderia certamente contribuir para nos aproximar. Também poderia contribuir para criar uma imagem, em Portugal, de que o Brasil nos respeita afinal de contas.

“Por um lado, essa presença é indelével, está no sangue, na língua e na história, mas, por outro, ela é diminuída, desprezada, rejeitada. Rejeitando essa herança, o Brasil rejeita tudo o que é mau, porque há sempre esse lado mau em todas as coisas

O senhor atribui parte da responsabi­lidade a Portugal. O que o país pode fazer?

A primeira coisa é o conhecimen­to da realidade como ela é, como ela se apresenta. E abandonar o blablablá da amizade luso-brasileira, que só existe nas quatro paredes dos eventos conjuntos. Logo que se sai dali, a realidade é completame­nte diferente. Isso só perturba, não adianta. É melhor nós aceitarmos a diferença para podermos superá-la.

Portugal teria de ter a consciênci­a de que sua presença teria de ser muito mais profunda do que é hoje, de uma forma generaliza­da e em particular nos agentes culturais e diplomátic­os portuguese­s. Neste momento, a relação é muito unilateral. A Globo é dominante nas novelas, nós sabemos tudo sobre o Brasil, mas o Brasil pouco sabe sobre Portugal.

 ?? ?? Carlos Fino, 73
Nascido em Lisboa, estudou direito antes de ingressar no jornalismo na década de 1970. Foi correspond­ente internacio­nal e de guerra pela RTP, com destaque para a cobertura da invasão americana do Iraque em 2003. Mudou-se para o Brasil em 2004, onde foi conselheir­o de imprensa da embaixada de Portugal em Brasília até 2012.
Carlos Fino, 73 Nascido em Lisboa, estudou direito antes de ingressar no jornalismo na década de 1970. Foi correspond­ente internacio­nal e de guerra pela RTP, com destaque para a cobertura da invasão americana do Iraque em 2003. Mudou-se para o Brasil em 2004, onde foi conselheir­o de imprensa da embaixada de Portugal em Brasília até 2012.

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