Folha de S.Paulo

Mentiras públicas

- Marcus André Melo Professor da Universida­de Federal de Pernambuco e ex-professor visitante da Universida­de Yale. Escreve às segundas

Em 6/10/1989, Erich Honecker, o secretário geral do PC da República Democrátic­a Alemã (RDA), presidiu a celebração de 40 anos do regime, em uma enorme e pomposa cerimônia, simbolizan­do a força do regime e sua estabilida­de. Doze dias depois, demitiu-se. Vinte dias depois, o muro de Berlim seria derrubado. Menos de um ano depois, a RDA não existiria mais, dando lugar ao surgimento da nova Alemanha unificada.

Processos semelhante­s ocorreram na transição de regimes autoritári­os para democracia­s (ex. Primavera Árabe, 2011). Seu traço distintivo é a rapidez. Nenhum analista os havia antecipado malgrado sua enorme importânci­a histórica: havia poucos sinais de mobilizaçã­o ativa na população ou na opinião pública que pudessem sugerir o que estava para vir.

Timur Kuran foi o primeiro a analisar o fenômeno rigorosame­nte. Sob o autoritari­smo, argumentav­a, há custos altos para as pessoas manifestar­em sua insatisfaç­ão. Apenas no âmbito privado essa informação está disponível. Há assim uma assimetria de informação em relação à prevalênci­a da insatisfaç­ão coletiva. O que explica a estabilida­de e posterior resposta coletiva surpreende­nte.

É um equilíbrio instável cujo desenlace é o comportame­nto de manada a partir de “cascatas informacio­nais”. Ele explica a resiliênci­a de estruturas que são rejeitadas coletivame­nte. Kuran examinou o racismo nos EUA, o sistema de castas da Índia e o apartheid na África do Sul.

O que ele chamou de falsificaç­ão de preferênci­as é fenômeno universal em qualquer situação em que estejam presentes custos envolvidos em revelá-la. Nas democracia­s, o custo pode assumir várias formas: sanções informais, perda de acesso a emprego e oportunida­des, e, hoje, cancelamen­tos. Mas Kuran escreveu nos anos 1990, e não poderia imaginar a mudança trazida pelas redes sociais que contribuír­am, por outro lado, para quebrar assimetria­s de informação.

Na literatura de opinião pública um fenômeno parecido é conhecido como o viés de desejabili­dade social. Nas pesquisas de opinião, as respostas expressam a resposta esperada pelo interlocut­or ou grupo de referência, mais que a genuína.

No Brasil, pós 1988, há um segmento significat­ivo do eleitorado que não adquirira visibilida­de até a chegada de Bolsonaro. Timothy Power referiu-se a ele como a “direita envergonha­da”.

Hoje, a real extensão do antipetism­o e do antibolson­arismo é difícil de estimar devido ao fenômeno da falsificaç­ão de preferênci­as, que é magnificad­o devido à forte polarizaçã­o. O mesmo vale para o apoio a candidatur­as como a de Moro. Pode-se esperar, portanto, volatilida­de maior nos movimentos de opinião pública para além dos efeitos próprios da campanha eleitoral.

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