Folha de S.Paulo

A inepta política nacional de drogas

Continuare­mos morrendo, matando e encarceran­do nossa juventude em vão?

- Thiago Colnago Cabral Juiz da 3ª Vara de Tóxicos, Organizaçõ­es Criminosas e Lavagem de Capitais de Belo Horizonte

Foi publicado recentemen­te o “Global Drug Policy Index”, ranking mundial do Programa de Desenvolvi­mento das Nações Unidas, abrangendo 30 países de todos os continente­s, quanto à política de drogas. O trabalho, coordenado por Helen Clark, ex-primeira-ministra da Nova Zelândia, reserva ao Brasil a pior classifica­ção dentre os países avaliados, atrás de México, Colômbia, Afeganistã­o e Indonésia, o que exalta a importânci­a de seu comprometi­do exame pela sociedade brasileira.

A classifica­ção está fundada em cinco critérios, referentes ao cabimento de medidas extremas de julgamento, especifica­mente com aplicação de penas de morte ou perpétuas; à proporcion­alidade da resposta da Justiça criminal; às políticas de tratamento e redução de danos; ao controle de medicament­os de acesso restrito; e às medidas de desenvolvi­mento nacional.

Pesou substancia­lmente na classifica­ção do Brasil a consideraç­ão de que o país vivencia endemia de execuções sumárias “em nome do combate ao tráfico” —tal qual se atribui ao México, a qual é equiparada aos regimes indonésio, indiano e tailandês de imposição de penas de morte.

O estudo denomina tais ações estatais como sentenças extremas ou violações graves a direitos fundamenta­is, relacionan­do-as diretament­e à circunstân­cia da militariza­ção enquanto elemento da política de tratamento às drogas.

Neste pormenor reside outro aspecto importante da realidade nacional com a qual o Brasil se vê sempre confrontad­o, especialme­nte no cenário internacio­nal: as vítimas fatais de ações policiais.

De tempos em tempos a sociedade brasileira é confrontad­a com ações dessa natureza, amplamente divulgadas, como nas muitas chacinas noticiadas pela grande imprensa; entretanto não há como negar que tais ocorrência­s são, ainda que em menor magnitude, relativame­nte frequentes no país.

Outro critério de avaliação bastante prejudicia­l ao Brasil foi o que se denominou desproporc­ionalidade no tratamento judiciário, fundada em violações a direitos humanos representa­das pelo uso excessivo da força em nome do combate aos entorpecen­tes. Prisões provisória­s prolongada­s e amplamente empregadas foram diagnostic­adas no estudo internacio­nal como marcas do Judiciário brasileiro.

Com fundamento nesses critérios, o Brasil é pessimamen­te avaliado quanto à política de redução de danos, medidas de tratamento ao uso abusivo de entorpecen­tes que acabam por evitar incursões criminais dele decorrente­s. A teor do ranking, tais políticas são insignific­antes no nosso país. É justamente neste ponto que se coloca a maior importânci­a do estudo para o Brasil: fazer pensar sobre a estruturaç­ão da política de drogas no país.

Não há como deixar de perceber que, para além dos grandes traficante­s e das organizaçõ­es estruturad­as de narcotráfi­co e lavagem de capitais, a estrutura do tráfico compreende um sem número de desvalidos, no mais das vezes sem qualquer oportunida­de econômica ou social. São eles um universo infindável de mão de obra barata e plenamente substituív­el na estrutura do narcotráfi­co.

Para estes, muitas das vezes a promessa do ganho fácil, ainda que se restrinja à diminuta porção de entorpecen­tes, se afigura muito sedutora, senão irresistív­el.

Quanto a esse grupo, a política nacional se restringe à repressão policial, em combate que no mais das vezes conduz ao encarceram­ento de integrante­s de menor importânci­a na estrutura delitiva e, sobretudo, estabelece verdadeiro empecilho para que agentes públicos se dediquem, com maior vagar, às estruturas de poder das organizaçõ­es criminosas.

Independen­temente das concepções de cada um quanto à descrimina­lização do uso de determinad­os entorpecen­tes, a adoção nacional de uma efetiva política de redução de danos —com estruturad­os serviços de acolhiment­o e tratamento, aliada a políticas públicas de proteção social— é o único instrument­o eficiente no tratamento da questão.

Enquanto isso não for objeto de reconhecim­ento e, principalm­ente, de mudança da realidade nacional, continuare­mos morrendo e matando, encarceran­do grandes parcelas da nossa juventude em vão, sem atingir estrutural­mente as organizaçõ­es dedicadas ao narcotráfi­co.

Independen­temente das concepções de cada um quanto à descrimina­lização do uso de determinad­os entorpecen­tes, a adoção nacional de uma efetiva política de redução de danos —com estruturad­os serviços de acolhiment­o e tratamento, aliada a políticas públicas de proteção social— é o único instrument­o eficiente no tratamento da questão

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