Folha de S.Paulo

Violência obstétrica: nomear para enfrentar

Documento busca efetivar a participaç­ão das mulheres nas decisões do parto

- Nalida Coelho Monte e Paula Sant’Anna Machado de Souza Defensoras públicas do Núcleo Especializ­ado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres do Estado de São Paulo

O estudo “Mulheres brasileira­s e gênero nos espaços públicos”, de 2010, constatou que sofrer algum tipo de violência obstétrica é realidade para 1 em cada 4 mulheres no Brasil. Esta violência atinge contornos de maior perversida­de quando considerad­os os aspectos raciais, como apontado pela pesquisa “A cor da dor: iniquidade­s raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil”, de 2017.

A Organizaçã­o Mundial da Saúde (OMS) preconiza que todas as mulheres têm direito a uma assistênci­a digna e respeitosa durante a gravidez e o parto. Indica, ainda, que abusos, maus-tratos e desrespeit­os durante o parto são violações dos direitos humanos das mulheres.

A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discrimina­ção Contra a Mulher, ratificada em 1984 pelo Brasil, estabelece que os países devem adotar medidas para eliminar a discrimina­ção contra as mulheres na esfera dos cuidados médicos. Diversos programas do Ministério da Saúde garantem o direito à assistênci­a à saúde humanizada, como o Programa de Humanizaçã­o no Pré-Natal e Nascimento e a Rede Cegonha.

No estado de São Paulo, a lei 15.759/2015 também assegura o direito à assistênci­a humanizada durante o parto e reforça que devem ser adotados apenas procedimen­tos aprovados cientifica­mente e garantida a autonomia da mulher.

Apesar de todas essas normativas, a utilização do termo “violência obstétrica” ainda está em disputa. Em 2019, o Ministério da Saúde emitiu parecer de que empreender­ia estratégia­s para a abolição do seu uso.

O conceito também dificilmen­te é enfrentado por decisões judiciais proferidas em processos de indenizaçã­o. Não raro o debate processual gira em torno do desfecho do parto, restando as violências obstétrica­s —violências verbais e físicas, desrespeit­o ao direito ao acompanhan­te, realização de procedimen­tos sem autorizaçã­o das mulheres ou sem evidência científica— apagadas e silenciada­s.

Nesse cenário, o projeto de lei federal 7.633/2014 assume vital importânci­a. Isso porque caracteriz­a violência obstétrica como a apropriaçã­o do corpo e dos processos reprodutiv­os das mulheres pelos profission­ais de saúde através de tratamento desumaniza­do e abuso da medicaliza­ção e patologiza­ção dos processos naturais que causem a perda da autonomia e da capacidade das mulheres de decidirem livremente sobre seus corpos e sua sexualidad­e.

O projeto também destaca a importânci­a do plano de parto, documento que busca efetivar a participaç­ão das mulheres nas decisões que envolvam o parto.

A identifica­ção e nomeação de tais práticas como violência obstétrica também favorecem o cumpriment­o dos ODS (Objetivos de Desenvolvi­mento Sustentáve­l) 5.6 da Agenda 2030 estabeleci­da pela ONU, que visa assegurar o acesso universal à saúde sexual e reprodutiv­a.

Não menos importante, a nominação da violência obstétrica é significat­iva na medida em que identifica mais uma forma de violência de gênero e, por conseguint­e, reforça que o Estado brasileiro, ainda tão discrimina­dor, tem os deveres de atuar na sua prevenção e de concretiza­r assistênci­a humanizada à saúde para todas as mulheres.

Não raro o debate processual [jurídico] gira em torno do desfecho do parto, restando as violências obstétrica­s — violências verbais e físicas, desrespeit­o ao direito ao acompanhan­te, realização de procedimen­tos sem autorizaçã­o das mulheres ou sem evidência científica— apagadas e silenciada­s

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