Casal da etnia mais perseguida pelo Talibã reencontra os filhos no Brasil
Família de afegãos do povo hazara enfrentou fuga, prisão e espera de 7 meses até chegar a SP
são paulo Com o dedo passando pelo pescoço, como se fizesse um corte, Najiba Ibrahimi, 36, mostra o que teria acontecido a ela se não tivesse conseguido fugir de seu país. Sentada no trem que liga o aeroporto internacional de Guarulhos ao centro de São Paulo, a afegã de lenço amarelo reúne várias características que a tornam um alvo preferencial para o Talibã: é mulher, independente, trabalhava como treinadora de futebol e ciclismo em uma escola de meninas e pertence à etnia hazara, a mais perseguida pelo grupo fundamentalista islâmico.
Najiba é filha de Sorab Kokhan, 65, e Raihana Ibrahimi, 48, um casal de refugiados que possui um pequeno restaurante de comida típica no bairro da Liberdade, região central de São Paulo. Na última quintafeira (10), ela chegou ao Brasil com a filha adolescente, um irmão e uma prima, após uma perigosa fuga até o Paquistão e meses de espera e incerteza.
Sorab já tentava trazer os parentes para perto dele havia dois anos, sem sucesso. Em meados de 2021, ao perceber que o Talibã ganhava terreno rapidamente às vésperas da retirada militar americana, ele conta que foi até o Afeganistão tentar resgatar os filhos. No dia 15 de agosto, o grupo invadiu Cabul e tomou o poder. Dali em diante, foram sete meses de agonia até que eles finalmente conseguissem vir para o Brasil.
“Eles passaram por montanhas, vales, sempre escondidos porque os talibãs estão por toda parte”, conta Sorab, sobre a fuga até o Paquistão. “Em cada trecho, não sabíamos se eles os iriam deixar passar ou não. Tiveram que cruzar a fronteira clandestinamente, as meninas usavam burca e entraram, mas meu filho acabou sendo preso logo depois de atravessar.”
Abdullah, 17, passou dez dias detido. “Quando nos pegaram, eles me bateram muito”, relata o garoto, que até a queda de Cabul era estudante universitário em uma cidade da província de Ghazni, no leste do país, onde a família morava. “Eu não sabia o que seria da minha vida, achei que nunca mais voltaria para casa. Não pude me comunicar com ninguém. Minha mãe e meu pai acharam que eu tivesse sido morto pela polícia.”
Ele acabou deportado para o Afeganistão e teve que enfrentar novamente o mesmo caminho até a fronteira e depois para Islamabad, capital paquistanesa, onde passaria pelos trâmites para obter o visto. Sorab voltou ao Brasil enquanto os parentes esperavam pelo processo burocrático.
Além de Abdullah, de Najiba e de sua filha, a prima deles, Setara, 24, acompanhava o grupo. A jovem, militar no governo anterior, teve o pai assassinado pelos talibãs e corria especial risco se ficasse no país.
O governo brasileiro aprovou um visto humanitário para afegãos no dia 3 de setembro. Como o Brasil não tem embaixada em Cabul, o documento tem que ser obtido em outros países da região, como o Paquistão e o Irã. O trajeto para chegar a esses lugares é arriscado, especialmente para aqueles grupos que são mais suscetíveis à violência dos talibãs.
É o caso do povo hazara, ao qual pertencem Sorab, Raihana e sua família. De origem mongol, a etnia já foi predominante no Afeganistão, mas após ser vítima de muitos massacres hoje corresponde a cerca de 20% dos 40 milhões de habitantes do país.
Os hazaras foram brutalmente oprimidos no outro período em que o Talibã comandou o país, de 1996 a 2001, e são considerados a etnia mais discriminada pelo grupo fundamentalista. Enquanto mais de 80% dos afegãos são muçulmanos sunitas, os hazaras são majoritariamente xiitas, o que os torna alvo frequente também de ataques dos terroristas do Estado Islâmico.
“Sempre fomos perseguidos por todos os lados. E agora começou a barbaridade de novo. Os fascistas do Talibã querem exterminar o povo hazara”, afirma Sorab, que na década de 1980 lutou contra os russos na Guerra Afegã-Soviética e ficou dois anos preso.
Ele migrou para o Brasil em 2011, e Raihana chegou seis anos depois. “Queria um lugar para ir em frente. Aqui é uma terra livre, um país bom, com democracia. Queremos estudar, ser cidadãos honestos.”
No Brasil, Sorab deu aula de idiomas —ele fala inglês, espanhol, francês, alemão, turco, persa e dari— e depois montou o restaurante no bairro da Liberdade. Inicialmente, vendia pastel e pratos brasileiros, mas recentemente o casal decidiu servir comida afegã, indiana e tailandesa. O estabelecimento foi batizado de Ko i Baba, cadeia montanhosa de sua região de origem.
Pouco depois da invasão talibã a Cabul, uma cliente brasileira, Daniele Soares, foi ao restaurante e encontrou Raihana chorando, preocupada com a família. “Eu não conseguia mais dormir, comer, não sabia o que era dia e o que era noite. Fiquei com muito medo”, lembra a afegã.
Daniele então acionou amigos e, com o auxílio de um advogado voluntário e do grupo de apoio a refugiados “Eu me importo, e você?”, os quatro finalmente conseguiram embarcar. Ela foi ao aeroporto acompanhar o reencontro, junto com Swany Zenobini, ativista que participou do esforço para ajudar a família a chegar ao Brasil. “Foi um longo e árduo processo até esse desfecho. Não tem como não se emocionar”, disse.
Na noite anterior à chegada dos filhos, da sobrinha e da neta, o casal mal dormiu. Pela manhã, foram para o aeroporto usando blusas bordadas à mão por Raihana. O abraço no portão de desembarque foi acompanhado por lágrimas e descrito por Sorab, posteriormente, com estas palavras: “O sol iluminou o mundo”. Na bagagem, além de roupas, eles trouxeram uma panela especial para cozinhar o manto, bolinho de carne bovina feito no vapor, semelhante a um guioza.
Os seis membros da família agora dividem o imóvel de dois cômodos que antes abrigava apenas o casal, em cima do restaurante. O espaço é apertado, mas no dia da chegada ninguém parecia se importar. “Eu mal podia acreditar quando vi meus pais de novo. Estou tão feliz de estar aqui”, disse o jovem Abdullah.
No trajeto de trem até a casa, Najiba chorou pensando na filha mais nova, que teve que ficar. A outra filha dela, Azadeh, 16, a acompanhou na viagem. “Quero que ela aprenda o idioma, vá à escola e pratique esportes”, diz a mãe. Sorab também disse o que deseja para a família na nova vida no Brasil. “Quero que eles tenham uma vida estável, em paz. E que pouco a pouco esqueçam essa angústia que viveram.”
“Eu não sabia o que seria da minha vida, achei que nunca mais voltaria para casa. Não pude me comunicar com ninguém. Minha mãe e meu pai acharam que eu tivesse sido morto pela polícia Abdullah Ibrahimi afegão preso ao deixar o país