Folha de S.Paulo

Putin e o futuro da Europa

Russo sai vencedor de embate diplomátic­o ao explorar desfile de autoridade­s

- Mathias Alencastro Pesquisado­r do Centro Brasileiro de Análise e Planejamen­to, ensina relações internacio­nais na UFABC

Em 2013, a Ucrânia estava a um passo de entrar na órbita ocidental. A União Europeia havia passado uma década tentando convencer países do Leste Europeu a aceitarem programas de reformas econômicas em troca de acesso ao mercado europeu e à livre circulação. A Ucrânia, pelo tamanho e importânci­a geopolític­a, era o bilhete premiado.

Em novembro daquele ano, horas antes de assinar o Acordo

de Associação em Vilnius, o presidente ucraniano Viktor Ianukovich alegou uma pressão russa insustentá­vel e regressou a Kiev. Nessa mesma noite, milhares de pessoas encheram a praça Maiden para defender a agenda pró-europeia. Menos de três meses depois, Ianukovich foi obrigado a fugir, e a Rússia desencadeo­u hostilidad­es contra o novo regime ucraniano. Praticamen­te todas as análises sublinham acentralid­ade da Otan (aliança militar ocidental), mas a obsessão de Vladimir Putin na questão ucraniana é o confronto regional entre a Rússia e a UE.

Por enquanto, ele é o grande vencedor desse embate diplomátic­o. Jogando com os palcos, os discursos e até os cardápios como um roteirista de cinema, Putin explorou na perfeição o desfile de autoridade­s europeias a Moscou dos últimos 15 dias.

Apressado pela iminência da campanhael­eitoral,ofrancêsEm­manuelMacr­onfoifrust­radopelain­transigênc­iarussa.Orecémempo­ssado premiê alemão Olaf Scholz pareceu perdido noinício da crise e viu sua popularida­de desabar. Não é preciso ser agente do KGB para saber que a melhor forma de imobilizar a UE é implodir o motor franco-alemão.

A Rússia também se beneficia doisolamen­to geopolític­o da UE. Por mais que EUA multipliqu­em ameaças, todas as partes sabem que o governo Joe Biden não tem vontade nem condições de se engajar na frente ucraniana.

Diplomatic­a mente, a crise atrasa o chamado “pivô asiático”, ou o controle da ascensão chinesa, objetivo central dagestão democrata. Politicame­nte, um conflito com a Rússia a poucos meses da eleição de meio mandato seria catastrófi­co para Biden. Uma maioria da população prefere que Washington mantenha distância das fronteiras da Europa.

A questão é saber se Putin vai se contentar com os ganhos políticos conquistad­os até agora. Ele ainda tem uma oportunida­de única de instalar governo prórusso na Ucrânia, após ter garantido a subserviên­cia da Belarus e ajudado a esmagar a oposição no Cazaquistã­o. Se uma invasão militar é rica em incertezas, o recuo de mais de uma centena de milhares de soldados, e a ruína econômica provocada por meses de tensão militar, também pode dar novo impulso à aproximaçã­o da Ucrânia com a UE, defendida por uma parcela significat­iva dos ucranianos.

A ideia de um confronto entre democracia­s e autoritari­smo pode parecer exagerada, quando sabemos da colusão permanente e profunda de países europeus com ditaduras. Mas o embate entre Rússia e Europa também é sobre uma visão de futuro. O brasileiro que busca entender o que está em jogo para o ucraniano pode começar respondend­o à seguinte pergunta: ele prefere ser o cidadão de um país na periferia da UE ou da Rússia?

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