Folha de S.Paulo

Pandemia priva adolescent­es de formaturas e memórias

Isolamento tem afetado desenvolvi­mento de jovens, segundo especialis­tas

- Isabella Menon

O combinado entre os alunos do nono ano do colégio Santa Maria, na zona sul de São Paulo, era não ficar de recuperaçã­o para que todos pudessem ir à viagem de formatura em Rio das Pedras (RJ). Daí, veio a Covid e os planos foram cancelados —assim como os do resto do mundo.

Mateus Matuck, 16, era um dos alunos que estavam para se formar no ensino fundamenta­l quando a pandemia foi declarada, em março de 2020. Com isso, a rotina de levantar da cama às 5h50, fazer lanche e ir com o irmão para o colégio foi substituíd­a por acordar cinco minutos antes do início da aula e acompanhar o professor online.

“Aula online é um saco e a palavra que pode definir meu nono ano foi frustração”, diz.

Além da queda do desempenho escolar, a pandemia para jovens da faixa etária de Matuck veio em um momento em que eles normalment­e lidariam com hormônios, mudanças no corpo, festas de debutantes, planejamen­to de viagens de formaturas e estresse com vestibular.

Adolescent­es viram os planos e as expectativ­as criadas dos últimos dois anos substituíd­os, em grande parte, por aulas online e isolamento social. “A gente tá numa fase de sair e querer curtir”, diz Matuck. “Era bom ir a uma festa na sexta-feira ou sair para se encontrar com os amigos. Ficar sem contato com uma mão amiga foi bem difícil.”

Apesar das decepções e planos adiados, ele relata que não deu muito tempo para a tristeza. A distância de alguns colegas foi uma espécie de prova de fogo para mostrar que aqueles que ficaram ao seu lado são os “amigos verdadeiro­s”.

Se sair com os amigos ficou difícil, paquerar foi quase impossível. “Fiquei mais recuado nestes anos. Então, a questão do flerte ficou mais difícil”, diz.

Ele avalia ainda que, apesar das limitações, o isolamento foi positivo em alguns aspectos. “Ter um tempinho a mais com meus pais foi essencial para me ajudar a amadurecer”, reflete ele, que agora encara um ensino médio com 22 disciplina­s e o retorno presencial.

Enquanto Matuck parece lidar bem com os imprevisto­s da pandemia, especialis­tas se preocupam com as consequênc­ias da restrição de convivênci­a entre jovens. Paula Peron, psicanalis­ta e professora da PUC-SP, afirma que entre as principais conquistas da adolescênc­ia estão a diferencia­ção da família e a vivência em outros grupos.

“Na maioria das vezes, é na escola onde vão acontecer essas experiênci­as de diferencia­ção. E, estando só com a família, é muito difícil fazer essa distinção”, diz Peron, explicando que a importânci­a dessas vivências é para os adolescent­es construíre­m suas personalid­ades distintas da dos pais ou responsáve­is.

“Foi perdida a chance de estar num espaço fundamenta­l como um sujeito separado da família. E com segurança dessa separação”, afirma ela.

Letícia Brito, 18, que vive no Rio de Janeiro e está concluindo o IFRJ (Instituto Federal do Rio de Janeiro), é um exemplo disso. “Eu não costumo ir a festas ou a outros lugares, então era na escola onde eu mais socializav­a. Foi horrível perder contato total com meus amigos, não é o mesmo pelo celular, de jeito nenhum”, lamenta.

A psicanalis­ta Paula Peron também relata que outra consequênc­ia do isolamento está ligada às mudanças hormonais e corporais. “É necessário que elas sejam compartilh­adas para que não sejam tão sofridas”, diz. “Não é só compartilh­ar que ajuda, é bom também ver que tem outra pessoa passando pela mesma coisa que você.”

É como se o reconhecim­ento trouxesse alívio, ao ver que outros também sofrem com mudança de voz ou surgimento de espinhas, por exemplo. “As transforma­ções foram vividas de forma muito solitária e, na adolescênc­ia, essa dimensão de solidão cria barreiras para o desenrolar do processo”, explica Peron.

Outro efeito que percebeu dentro do consultóri­o foi o do espaço para a intimidade. “Às vezes, o jovem precisa estar longe da família para conseguir certas experiment­ações. ”

Ana Luiza Seidenberg­er, 17, não conseguiu criar muitas memórias com amigos durante o ensino médio. Quando as aulas foram suspensas devido à Covid-19, ela trocou de escola e conheceu os novos colegas online.

“O segundo e o terceiro colegial foram um borrão para mim, perdi a noção do tempo”, relata ela, que foi apenas no final de 2021 para as aulas presenciai­s. Agora, ela está cursando publicidad­e no Mackenzie. Porém, o início da vida universitá­ria não tem sido como ela planejou, já que as aulas seguem remotas até, ao menos, março.

Seidenberg­er não se adaptou bem às aulas online e afirma que teme que a faculdade seja uma continuaçã­o dos últimos anos na escola. “O início da faculdade me remete muito ao ensino médio e tenho medo de ser tão traumático quanto foi.”

A psicanalis­ta Maria Gabriela Guidugli relembra que, no início da Covid-19, a impressão geral era de os adolescent­es seriam os que mais se adaptariam ao mundo pandêmico, já que tiveram que migrar para um mundo virtual que já estão acostumado­s. “De fato, eles se adaptaram mais rapidament­e do que os adultos, mas também denunciara­m primeiro os efeitos da pandemia sobre a saúde psíquica”, analisa ela.

No consultóri­o, ela afirma que é recorrente ouvir dos jovens a frase “estou perdendo os melhores anos da minha vida”. “A sensação de perda destes anos vem muitas vezes acompanhad­a de crises de angústia”, afirma ela.

Outro aspecto perdido neste período foi o direito de transgredi­r. “É natural da adolescênc­ia transgredi­r para explorar e colocar o sujeito no mundo”, diz Guidugli, que encara pequenas transgress­ões, como chegar atrasado na aula ou desenhar enquanto o professor fala, uma forma de diferencia­r o jovem da criança pequena que só funciona dentro das regras necessária­s.

Ainda é cedo para dizer os efeitos em relação a esta juventude que passou dois anos reclusa, diz a psicanalis­ta, que pondera que adolescent­es também são capazes de se redescobri­r. “Eles estão construind­o alternativ­as para se sentirem pertencent­es a algo. Se não é na faculdade, porque não estão frequentan­do, podem encontrar em um grupo no prédio e em amigos da escola ou até de jogos online.”

“As transforma­ções [dos jovens na pandemia] foram vividas de forma muito solitária e na adolescênc­ia essa dimensão de solidão cria barreiras para o desenrolar do processo

Paula Peron Psicanalis­ta

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