Folha de S.Paulo

Tava bêbado

Podemos passar décadas nos enganando com histórias para boi (a gente) dormir

- Maria Homem Psicanalis­ta e ensaísta, com pós-graduação pela Universida­de de Paris 8 e FFLCH-USP. Autora de “Lupa da Alma” e “Coisa de Menina?”

Como sabe o leitor, o aparelho psíquico funciona basicament­e em dois campos, com leis e conteúdos distintos: o consciente e o inconscien­te. O consciente trabalha com as noções usuais de tempo, espaço e causalidad­e. O inconscien­te opera com lógicas enigmática­s e entrelaça tempos e espaços, como nos sonhos. Como o nome diz, o inconscien­te não se apresenta facilmente para nós, aliás sobretudo para nós mesmos. Podemos passar décadas nos enganando com histórias para boi (a gente) dormir, como aquelas que a gente conta em entrevista de emprego: meu maior defeito é a insistênci­a. Ou em mesa de bar: me apaixonei perdidamen­te, mas não posso abandonar minha mulher porque sou fiel à mãe dos meus filhos. Até, depois de anos de lamento, você descobrir que precisava permanecer casado com a imagem da própria mãe. O escudo que nos protege de nosso inconscien­te e suas tristes verdades é a “censura”. Pois bem, há um ditado que diz: a censura é solúvel em álcool.

Claro, não estou fazendo apologia do álcool —embora tenha lido interessan­te entrevista da BBC publicada nesta Folha dizendo do papel dos aditivos químicos nos processos de civilizaçã­o, para ajudar o desconfiad­o bicho humano a aprender o risco da confiança e da cooperação. Então, Monark, que bom que você estava bêbado e pôde finalmente entrar em contato com tudo aquilo que você é. Uma sociedade menos hipócrita talvez conseguiss­e encaminhar seus conflitos de uma forma menos tortuosa.

Mas parece que ainda acreditamo­s piamente no mito da consciênci­a. Quando a perdemos, não somos. “Tava bêbado, não valeu”. Álibi pronto para sair da manga. Aham.

Cuidado: a próxima vez em que você disser isso, todos os advertidos vão estar atentos. É o que está por trás da linha da censura. Maridos e esposas, cuidado: não vale dizer “estava bêbado”. O cônjuge vai saber: isso é mais verdade do que aquele monte de blablablá que você me conta quando está lúcido.

Outra forma de escapar do que a gente faz (termo técnico: desimplica­ção subjetiva) é apelar para as emoções. Faz mais de 2.000 anos que a Razão venceu o páreo e pretende ser a escudeira da legitimida­de. Então a gente diz: estava com raiva, não valeu. Desculpa, foi um momento de descarga —catarse, o fluxo por onde escorre Pathos. Uma vez um cara disse: tava com raiva, tava com tanta raiva que dei paulada até matar. E continuei batendo sem nem perceber que já tinha matado. Estava literalmen­te cego de raiva, não conseguia ver o outro, não conseguia nem considerál­o um outro humano. Era um animal, uma pedra, uma coisa. Coisa a ser abatida (essa a engrenagem das estruturas totalitári­as de destruição em massa). Um sargento, também homem, branco, viu um outro homem, negro: fiquei com medo e matei. Estranho? Sim. Fiquei com medo de ele me agredir e matei.

A ira e o medo não são os únicos álibis no rol dos afetos convocados à nossa boa e velha prática de dizer “não foi culpa minha”. Virou até lei. Ah, tava com meus colegas caçando bandido do mal e senti “forte emoção”, então fiz uma chacina. Faxina geral na bandidagem. E ainda com o privilégio de me esconder na massa, a ocultadora master da responsabi­lidade individual. Excludente de ilicitude. Tadinho, era muita tensão para você lidar. Vai fundo, mata alguns. Não esquece: em nome do Bem.

O atento leitor já percebeu aonde quero chegar. Em bom português: patético o jogo retórico da desculpa furada quando uma cultura não consegue ter a coragem de assumir quem é, o que pensa e o que faz. Como diria Freud, somos sempre responsáve­is, inclusive pelo nosso inconscien­te.

Para fechar, a paulada de Brecht: a cadela do fascismo está sempre no cio.

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