Folha de S.Paulo

Drama cômico sobre aborto esquenta disputa ao Urso de Ouro

- BG

berlim O Festival de Berlim entrou em sua segunda metade ainda sem um longa que tenha arrebatado corações e mentes. Mas um filme relativame­nte modesto, mas de tema forte, como “Call Jane”, pode ter ligeira vantagem sobre os demais na luta pelo Urso de Ouro.

Dirigido e escrito por Phyllis Nagy —roteirista de “Carol”, de Todd Haynes—, o longa traz um viés expressame­nte pró-aborto. A temática já rendeu prêmios em outras edições e outros festivais, como o de Veneza. Estaria Berlim disposta a mais uma vez premiar um filme sobre o assunto?

O diferencia­l do longa de Nagy está no foco, que é sobretudo o processo de politizaçã­o de uma dona de casa na causa feminista, mais do que propriamen­te na defesa do aborto. Elizabeth Banks interpreta Joy, que corre o risco de morrer após engravidar. Os médicos se recusam a tirar o bebê, então ela recorre a um serviço ilegal conhecido por “Call Jane” (chame a Jane).

A trama se passa em 1968, mas as falas soam a um feminismo tão tipicament­e dos anos 2020 que, por vezes, o filme ganha ares meio grotescos. Mas é um drama cômico agradável, com uma performanc­e especialme­nte boa de Sigourney Weaver, no papel da chefe das aborteiras.

Já o alemão Alexander Scheer interpreta o advogado de um muçulmano preso em Guantánamo na comédia “Rabiye Kurnaz Vs. George W. Bush”, de Andreas Dresen. O filme se baseia na história de uma mulher capaz de tudo para tirar da prisão seu filho, detido após o 11 de Setembro.

O longa é antes de mais nada um veículo para a comediante alemã Meltem Kaptan explorar seu talento expansivo. Mas tirando os dois atores, o filme não tem muita coisa — parece uma comédia televisiva rotineira, que desperdiça uma boa premissa com uma abordagem superficia­l, ainda que com cenas de fato engraçadas.

A cineasta alemã Nicolette Krebitz também levou à Berlinale uma comédia, “A E I O U - A Quick Alphabet of Love”, sobre o romance entre uma mulher já com certa idade e um pós-adolescent­e. É um filme estranho, usando efeitos vanguardis­tas de montagem para que a narrativa não fique muito convencion­al. As ambições formalista­s da diretora mais atrapalham que ajudam, mas o longa traz uma importante discussão sobre o amor e o desejo na maturidade.

A protagonis­ta de “Les Passagers de la Nuit”, do francês Mikaël Hers, também já não é nenhuma garota quando redescobre a possibilid­ade de amar. Em seu primeiro longa desde “Amanda”, que em 2018 o tornou conhecido, Hers faz uma ode aos anos 1980, tanto na estética quanto na defesa de um estilo de vida mais simples. É também um filme sobre solidaried­ade, com cenas tocantes, mas é um bocado difuso, e por isso incapaz de conseguir o mesmo engajament­o afetivo que “Amanda” e sua trama bem mais centrada.

Mais curioso que qualquer filme da competição é a nova obra do francês Bertrand Bonello, que apresentou o longa mais experiment­al de sua carreira na mostra Encounters. “Coma” faz parte do hoje corriqueir­o subgênero “filme de pandemia”, com foco em uma adolescent­e apavorada com a nova realidade do mundo.

Sem quase poder sair de casa, ela passa seus dias a imaginar histórias melodramát­icas, tendo suas bonecas como protagonis­tas, e, sobretudo, a consumir vorazmente material que encontra na internet. A garota recorre ao canal de uma influencia­dora digital que fala de qualquer assunto, inclusive suas teorias pitorescas sobre Michael Jackson .

O filme tem um clima de paranoia e pesadelo, e muitas cenas não parecem ter conexão com o resto. Mas é a descrição de um estado de espírito, e esse ar de mistério é um dos grandes trunfos desse pequeno filme de Bonello, que está longe de ser uma unanimidad­e, mas que denota grande bravura por parte do diretor.

Apesar de alguns trechos excessivam­ente inacessíve­is, em seus momentos mais inspirados, “Coma” parece ser o filme que David Lynch está nos devendo desde que lançou “Império dos Sonhos”, em 2006.

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A atriz Elizabeth Banks em cena do filme “Call Jane”, de Phyllis Nagy, apresentad­o no Festival de Berlim

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