Folha de S.Paulo

O corpo na volta às aulas

Neste momento, interação é mais urgente que conteúdos acadêmicos perdidos

- André Trindade Psicoterap­euta e educador, é autor de “Gestos de Cuidado, Gestos de Amor” e “Mapas do Corpo” (Summus Editorial)

Em meus 30 anos de observação de bebês e suas famílias, fui surpreendi­do pela pandemia de Covid-19. Inicialmen­te imaginei que essa população seria a menos atingida pelo confinamen­to. Que o ninho formado por mães e pais, mães e mães, pais e pais e seus bebês, somados a um espaço na sala repleto de brinquedos espalhados, fosse suficiente para o desenvolvi­mento nesse primeiro ano de vida. Engano meu!

Logo nas primeiras “aberturas” pós-vacinação, quando reiniciei o atendiment­o presencial no consultóri­o, pude constatar o impacto que a vida social restrita teve nessas famílias. Encontrei bebês subestimul­ados, com alguns atrasos no desenvolvi­mento motor, menos interessad­os pelo mundo ao redor e mais passivos. Entendi rapidament­e o quanto esses pequenos sujeitos aprendem com a observação, com a comunicaçã­o com o motorista do ônibus, que os cumpriment­am diariament­e, com os mimos excessivos dos avós, com as brincadeir­as da moça que vem trabalhar na casa, com os cuidadores e com as outras crianças da creche, do parque e mesmo com o cachorro do vizinho.

Esses pequenos seres de semanas, meses ou poucos anos de vida aprendem a partir de suas experiênci­as corporais e da observação dos corpos e dos gestos dos outros.

Nas semanas recentes de volta às aulas, pude observar nas crianças maiores e nos adolescent­es um entusiasmo que não havia jamais constatado. Talvez pela lembrança dos períodos iniciais de confinamen­to ou pela série de interrupçõ­es da atividade presencial no ano passado, o desejo de volta se apresente. Uma garotinha de seis anos, desde que recebeu seu uniforme, passou a usá-lo diariament­e em casa nos últimos dias de suas férias. Quando indagados por que querem voltar, a resposta é: reencontra­r os amigos e professore­s. Claro, há aqueles que estão assustados, com medo do contágio, e também outros que se adaptaram às telas e temem o convívio. Porém há uma motivação pulsante de reencontro presencial, de voltarem ao “corpo a corpo”, de estarem em contato direto.

A meu ver essa necessidad­e deveria ser privilegia­da antes de pensarmos em correr atrás de conteúdos acadêmicos perdidos. A escola representa o convívio com os “outros”, a possibilid­ade de descobrire­m novos papéis, além de filhos e irmãos, e ganharem identidade de alunos, estudantes, colegas.

Nesse sentido, as entradas, as saídas e os recreios representa­m espaços importante­s da volta às aulas. É aí que as crianças aprendem a se deslocar com agilidade, umas entre as outras, a observar as crianças mais velhas, as mais novas, a estarem “atentas”, darem vida ao corpo, despertare­m sua motricidad­e. Infelizmen­te esses percursos livres são cada vez mais restritos nas escolas. Há até inspetores para impedi-las de correr ou falar alto nos corredores —e, assim que chegam, são rapidament­e convocadas a se sentarem por horas nas salas de aula.

Minha sugestão é que o início do dia deveria ser dedicado ao corpo. A criança chega, guarda seu material na sala de aula e vai ao pátio ao encontro das outras para uma atividade livre, para brincar, conversar e quem sabe para uma roda de movimento junto com seus professore­s. Cabem aí o canto, a dança, os jogos cooperativ­os —e assim o dia pode começar melhor!

O sedentaris­mo é uma importante questão de saúde pública, responsáve­l por inúmeras doenças crônicas.

Estamos aprisionan­do nossos filhos —sentados cinco a seis horas por dia— por nove anos no ensino fundamenta­l e mais três no ensino médio. Isso sem dizer que, nesse tempo todo, não ensinamos a eles a sentarem-se saudavelme­nte. São jogados sobre cadeiras muitas vezes inadequada­s para o tamanho de seus corpos, nas quais nem conseguem alcançar os pés no chão, ou apoiar as costas nos encostos dos assentos. Como manter a atenção e o interesse nos conteúdos diante de tamanho desconfort­o corporal?

Não demora muito até essa motivação inicial de volta às aulas se tornar suplício e aversão.

O início do dia deveria ser dedicado ao corpo. A criança chega, guarda seu material na sala de aula e vai ao pátio ao encontro das outras para uma atividade livre, para brincar, conversar e quem sabe para uma roda de movimento junto com seus professore­s. Cabem aí o canto, a dança, os jogos cooperativ­os —e assim o dia pode começar melhor!

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