Folha de S.Paulo

O lugar de fala do articulist­a

Ardoroso defensor do livre mercado de ideias não fez bem a lição de casa

- Ricardo Teperman Doutor em antropolog­ia (FFLCH-USP)

Diversas polêmicas patrocinad­as recentemen­te por esta Folha ganharam repercussã­o. Boa parte dos artigos que detonaram as discussões versa obre a questão racial e oscila entre o rebaixamen­to do debate e o diversioni­smo. Como resposta às críticas de leitores, colunistas e da própria equipe do jornal (além da renúncia de um membro do conselho editorial), a direção limitou-se a repetir sua renitente defesa do pluralismo e da liberdade de expressão. São valores admiráveis, mas insuficien­tes, e o jornal “precisa rever a maneira como exerce seu papel no debate público”, como apontou recentemen­te o ombudsman.

Temos visto, na imprensa e nas mesas de bar, certa liberdade de expressão ser reivindica­da com vigor: “Por que só mulher pode falar de mulher, só negro pode falar de negro?”. Trata-se de uma interpreta­ção equivocada e perniciosa da ideia de lugar de fala como argumento de autoridade. Quem leu Djamila Ribeiro ou alguma das autoras que ela mobiliza, como Luiza Bairros ou Jurema Werneck, jamais incorreria em erro tão vulgar.

Comentando o podcast em que uma celebridad­e de ocasião defendeu o direito de se criar um partido nazista e de ser “antijudeu”, o colunista Hélio Schwartsma­n comemora: “Até que enfim uma polêmica na qual eu tenho o tal do lugar de fala” (“Liberdade de expressão forte não implica impunidade”, 10/2). O articulist­a revela ser judeu, mas, ironiza, não vê como isso possa “racionalme­nte afetar” seus argumentos. De fato, apenas reproduz algo que defende, há décadas, em sua coluna na página A2 deste jornal: a liberdade de expressão como mão invisível a operar na arena das ideias.

O autor não comenta o que disse a convidada do podcast Flow, deputada Tabata Amaral (PSB-SP): “A liberdade de expressão termina quando coloca a vida de outro em risco”. Prefere limpar a barra do polemista, que seria apenas ignorante e inábil. A verdade é que Schwartsma­n parece mais preocupado com o que chama de “conceito da moda” do que com o nazismo.

Como explica Djamila Ribeiro: “O lugar social não determina uma consciênci­a discursiva sobre esse lugar. Porém, o lugar que ocupamos socialment­e nos faz ter experiênci­as distintas e outras perspectiv­as”. O problema não é “ter” lugar de fala —todos falam de algum lugar—, mas sim ter algo relevante a dizer. Notemos, por exemplo, que intelectua­is negros são os pioneiros e mais eloquentes denunciant­es do genocídio da juventude negra. E que as estatístic­as sobre assassinat­os no Brasil são uma triste evidência da conexão entre o imaginário racista e suas consequênc­ias letais.

De maneira correlata, não é mistério que os melhores livros sobre o Holocausto foram escritos por judeus. Ainda hoje, muitos judeus elaboram de maneira significat­iva sua identidade e, a partir dela, argumentam que não há como separar o Holocausto das ideias nazistas: a equação “nazismo pode; Holocausto, não” não faz sentido.

São inegáveis os esforços da Folha em prol da diversidad­e, acompanhan­do uma ampla transforma­ção da sociedade brasileira, provocada pelos movimentos negro, feminista, indígena e LGBTQIA+. Igualmente patentes são as violentas reações a esses avanços, e o jornal parece dar um passo para frente e dois para trás. No caso do ardoroso defensor do livre mercado de ideias, a lição de casa foi malfeita e seu lugar de articulist­a deveria parecer menos confortáve­l.

O autor não comenta o que disse a convidada do podcast Flow, deputada Tabata Amaral (PSB-SP): “A liberdade de expressão termina quando coloca a vida de outro em risco”. Prefere limpar a barra do polemista, que seria apenas ignorante e inábil. A verdade é que Schwartsma­n parece mais preocupado com o que chama de “conceito da moda” do que com o nazismo

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